Cinderela com Alzheimer
Tempo, criatura medonha,
que tudo sabe, tudo tem,
tudo desmonta.
Seus dentes afiados
destroçam sonhos,
desafiam medos,
descortinam ilusões,
alfinetam desejos.
Tempo, louco andarilho,
tem nas vísceras as fórmulas de Deus,
sabe traduzir o que nos faz rugir,
o que nos desembesta, o que nos cicatriza,
o que nos abençoa.
Tempo, fogoso mambembe,
só faz dissipar os cheiros do coração,
deixando os sonhos refogarem sem queimar,
nunca pede desculpa, nem licença,
nem perdão.
Do tempo pouco colho, pouco rebato,
além de pálidas rebarbas do meu desentender,
além do açúcares assustados da minha fé,
além da ferrugem desafinada da minha solidão.
Tempo, rei já velho, defumado, acuado,
hoje trago confidente nas diabruras da minha alma,
meu escravo alforriado rasgando o chão,
meu soluço mais bêbado dos confins
desgarrados dos farrapos sórdidos
do meu porão.