SUMMERTIME - para Aretha Franklin

No quarto imenso dessa casa pequena minha cama vazia parece um barco, tudo embaixo é silencioso tão escuro quanto improvável, terreno movediço, um charco.

Mas já não sinto medo, os fantasmas me espreitam respeitosamente junto as sombras e

fazem-me a melhor companhia.

Acendo a luz para ouvir melhor, espanto as trevas acolhedoras e penso que não foi boa ideia. É quando corta fundo a madrugada

a voz negra de Aretha Franklin gravada nos idos de 70.

O canto é um lamento, pergunta sem resposta, faca apontada no peito, familiar como arco íris em dia de chuva, como a saudade dos dias em que eu e você caminhávamos juntos.

A canção seria tema de filme, não lembro qual, eu já não me lembrava de nós, não lembrava da alegria nem do áspero, não lembrava desses acordes que doeram o dobro no silencio escuro improvável e movediço.

Nesses últimos tempos não tenho sido mais que a impressão sem cor de uma voz gravada nos anos 70, voz aveludada velada no fundo de uma gaveta vazia.

Aretha é presença modulada de amplitude variável, propaga no vazio sobre o charco e transforma meu quarto na proa de um barco naufragado.

O som dos metais ri de mim. O trompete e o sax é choro rouco a velar meu sonho que naufraga no mar absoluto que chega à praia entre dunas mal ordenadas.

Mas o que parecia tristeza revela certo conforto, nunca mais ouvi one more kiss, dear. Habituei-me contido na solidão e a partir dela avanço. Acontece que não tenho sido de fato, para outros fantasmas minto minha aparição.

Espiai, fantasmas, minha condição. Não tenho voz que alcance meus mortos, onde ficou grafado aquele sonho de dançar embriagado de quase nada a noite toda ouvindo Aretha Franklin?

O sonho sucumbiu no adeus, sucumbiu na palavra 'yesterday' sussurrada entre os dentes

brancos de Aretha Franklin. O sonho ficou no mesmo sitio em que desapareceu sua risada

debochada desconcertante elegantemente transvestida de desdém, a mesma risada de quando zombava da morte, de quando zombava da sorte nas noites intermináveis ao som de Aretha Franklin.

Hoje desentupo minhas veias com poesia

sopro ao nada o que ontem foi inspiração.

O silencio improvável volta para a gaveta

e eu, a remar o barco ancorado no charco,

vago no quarto imenso da casa vazia

em busca das impressões da sua boca na minha, mucosas do abismo nosso segredo.

*

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 18/08/2018
Reeditado em 23/02/2019
Código do texto: T6422745
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