Auto retrato

Não quero tocar o coração de ninguém

a não ser o da minha obra.

Minha obra de erigir com as mão sujas de barro

as asas de um anjo.

Um anjo que vai nascer

no meu último suspiro

- e voar por entre as árvores recém orvalhadas

e ascender à misteriosa trajetória dos que são guiados.

Não quero ser a porta-voz do que nunca fui,

do que nunca fiz,

do que nunca sonhei.

Sonhei o sonho da pedra em ser gente,

o sonho do animal em ser ouvido e compreendido

sonhei o absurdo de ver o amor vencer.

E de mistério em mistério,

por não compreender o tempo em que vivo,

ou de nele atordoar-me como um ser abandonado

longe do seu lar, dos afetos do coração,

vivo a buscar o rosto de Deus nas coisas do mundo

quando o mundo parece não mais ter rosto nenhum.

Mas essa noite me fala de alguns sorrisos,

de seus pássaros dormindo,

de alguém que num leito de hospital tem esperança.

E novamente me volto aos jardins da alma

para poder respirar melhor....