Retrato de Paul Gachet
Retrato de Paul Gachet
antes do rosto em queda apoiado no braço,
amou a simetria e os espaços.
antes do peso do corpo exausto e sombrio,
sentiu o tempo rastejar na pele
como caramujos antigos.
antes do olhar embotado em constante queda,
viu-se de fora de verdade,
viveu de esperas.
antes da boca pasma, odiou a imobilidade dos dentes e
sorriu desajeitado com o maxilar deformado
pela pressão da mente.
antes do sabor amargo e do saber amargo;
antes dos botões coloridos,
antes da falta de sentido,
antes das cores,
antes do tédio e da melancolia
as flores no vaso viviam eretas; pois estar em pé
significa estar viva.
mas antes das flores no vaso havia o nada e
o nada também pesa, tombando o sr. Gachet
como um fardo, pois
o nada é uma expansão indefinida,
um território indefinido, um prazer:
materialmente indisponível
sempre sentido.
é grande, maior
que a nossa pressa,
maior que o almejo da vida sem pressa,
maior que o almejo da vida sem tempo
que ainda seria vida
não fosse o peso do peito.
o nada é sempre maior e já vivia
antes da pose,
dos traços que falaram,
antes da contemplação aflita
da morte do infinito.
antes do retrato,
o sr. Gachet rabiscava nos livros
prosas que não seriam entregues,
versos que não seriam lidos...
antes, durante e depois do retrato,
o sr. Gachet chorou de vazios.