Minha Querida Dama Da noite
Comum em cidades barrocas por ai a fora, ladeiras com piso de pedra são uma marca.
Lá em cima sempre uma igreja, lá embaixo sempre algum pecado.
Há sempre muita fé, misticismo e procissão
A marcar cada pedra, os pés na procissão seguem ladeira acima em busca de salvar as almas de seus donos, com seus cânticos e orações, pois por serem de carne e osso são atormentados por pecados capitais, a luxuria.
Ah essa luxuria!
Lembro-me da minha meninice numa dessas cidades.
Meus pés de criança em certo momento no passado, movidos por curiosa atenção ia logo atrás do cortejo (procissão) em marcha muito lenta e olhos atentos, houvesse um caixão logo à frente, seria como um típico enterro desses de interior.
As casas antigas perfiladas nos dois lados da rua, com suas portas e janelas compridas, tinham paredes que de tão antigas remetiam o pensamento aos mortos de longa data (... )onde estariam suas almas?
Procissões ao fim da tarde, como as que aconteciam na semana santa, eram sempre muito comuns, ali as pessoas caminhavam ladeira acima e o sino da igreja, lá no alto, anunciava a hora da “Ave Maria”.
Sempre às seis. Sempre à luz quase de vela, de um sol escondido atrás dos montes.
Sim, e a luxúria!?
Aquele pecado cujos pés carregavam corpos ladeira acima em busca do perdão, corpos possuídos por libido a entorpecer almas e cegar os olhos, com desejos ocultos a arder no corpo.
A Ave Maria anunciada no badalar dos sinos também anunciava a hora da dama da noite, não aquela cujos pecados haveria de um dia ser confessado junto ao espírito santo.
O perfume dessa dama era doce e profundo e sempre se expunha ao anoitecer, quando se despia de seu véu e expunha delicadas flores brancas .
A noite todos os demônios saem de suas tocas.
E como demônios afeitos à noite, das fissuras das paredes das casas perfiladas, pequenos répteis surgiam e percorriam verticalmente as taipas devorando insetos. Mente e olhos de criança em uma inocência de anjo, dizem que crianças são anjos na terra!
Sim, esse era o cenário: Ladeira repleta de casas antigas com muros de pedra e jardins com flores, dentre as quais a dama da noite se destacava. "As lagartixas surgiam na mesma hora em que a dama da noite exalava o seu perfume característico, ao anoitecer".
Lagartixas, bichos de hábitos noturnos que atendendo ao chamado dos sinos brotavam das fissuras das paredes e se confundiam com o perfume doce e profundo dessa dama tão cobiçada.
Cabeça de moleque pequeno ,cujos pés curiosos sempre subiam a ladeira ao entardecer ,num mundo a desvendar em meio a um universo cheio de mistérios.
De certa forma, por muito tempo achei que o doce perfume que flutuava desde o crepúsculo provinha desses pequenos repteis.
O tempo passou, como sempre passa, e enfim a confusão foi desfeita, nossa dama da noite tem nome, minha linda "Cestrum nocturnum" e o seu perfume é só seu.
Quanto aos pecados, os joelhos dos ascéticos postos aos pés do confessionário sempre darão ao corpo o direito de pecar e ser perdoado e à alma o acesso ao paraíso eterno.
Pois, como disse Gregório de Mattos, braços abertos, cravados na cruz e olhos eclipsados que vertem sangue, estão despertos para perdoar e se fecham por não condenar.