Desabafo

enojei-me

enojei-me de mim mesmo

da minha falsa candura

da minha real covardia

enojei-me da minha fuga

e dos meus medos

da minha sombra escura

pássaro negro nas nesgas claras do ar

flanando como os meus sonhos sem rimas

que nem consigo entrever

que não consigo atinar

um sem sentido me espiando

do sempre mesmo lugar

enojei-me dos pretenciosos

e os encantados com o poder

enojei-me dos homens

enojei-me das gentes

vendilhões de tristes madrugadas

de tantas noites sonhadas

dos laivos de tantas manhãs rasgadas

pelos passos falhos do vento

pelas rimas de um velho e doce poema

deixado para se declamar num junho inundado de azul

o que serei quando esquecer este mundo?

outra vida?

passado em chamas?

vento suave?

tufão?

um anjo à deriva e alado?

desdita?

saudades?

ou o vazio atávico e inominado caindo das minhas mãos?

a vida incompleta

que escorre, ressuma e grita?

pouco importa

não vejo nem a luz nem a porta

que me tire desta cava

onde, inelutavelmente, o tempo cai sobre mim em descompasso

não sou um homem do meu tempo

"meu tempo" nada tem de meu, nada tem de mim

meu tempo é só os momentos que me levam até o meu fim