HERANÇA

Eu nunca tive um videogame

Eu nunca tive um video cassete

Eu nunca tive um três-em-um

Pois minha mãe nunca mereceu essas coisas

Minha mãe lavava roupa, passava a roupa

Fazia comida, limpava a casa

Mas não fazia mais do que a sua obrigação

Sendo que a minha obrigação era brincar o dia inteiro

Um dia minha mãe tentou desistir e não conseguiu:

Horas e horas esvaziando o estômago vazio

Depois ficou deitada alguns meses

Sem levantar da cama.

Às vezes o corpo levantava

Mas o espírito, teimoso, continuava deitado.

Minha mãe não teve tempo de merecer alguma coisa

Pois, uma atrás da outra, foram entrando as pessoas

Que por direito mereciam

E ela passou a vida inteira escutando

Que não tinha mais direito

Minha mãe reinou alguns anos

soberana entre todas as suas empregadas

Até que houve a mudança e seus poderes foram aniquilados

Mas não foi pela soberba ou qualquer outro vício

Foi apenas por não ser amada.

O dinheiro veio depois

Hoje eu já não brinco o dia inteiro

E minha mãe já nem anda pela casa

pois nem o corpo mais obedece

É apenas alguém que se arrasta

esperando o momento de se encontrar com Deus

Não, eu nunca tive um vídeogame, nem um

vídeocassete, eu nunca tive um três-em-um,

Talvez nem tenha uma herança

Minha herança é a lembrança que escrevo

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