NOITE (IN) ESQUECÍVEL

I

Vejo estrelas

e um luar patético que invade minha pobre alma

o silêncio é entrecortado por sons esparsos

jorrados levemente e esparsamente

Caminho por uma calçada inexistente

fisicamente inexistente

como a própria caminhada inexiste

Caminho por entre sonhos (não) velados

descansos profundos, descansos forçados

descansos levemente entrecortados

Vigília e Insônia

ou, quem sabe,

um tumulto horripilante sinestésico

estruturado em sonhos tensos

II

Uma estrela cadente riscou um céu

ofuscado por luzes artificiais

o homem que agora descansa já muito construiu

e destruiu belezas naturais

e também o céu quer invadir

Muitos quilômetros a estrela percorreu

para morrer desintegrada na atmosfera terrestre

Pedidos não são atendidos

Suspendo minhas observações

e suspendo meu olhar ao céu

Como que me desfazendo

em uma prece impotente e sincera

meditando meus medos, vontades e realidades

distraio-me em meus sonhos que sonho acordado

e viajo como que realmente

por uma vida irreal

III

Certa vez me apaixonei por alguns olhos falsos

e neles cri fielmente, sendo deles o próprio autor metafísico

e era seu super-herói particular

pronto a atender todos seus desejos

pronto a salvá-la de situações improváveis

E sempre procurei encontrá-los realmente

IV

Dois gatos enamorados me trazem novamente á realidade

e escuto gritos como que crianças insones

e distraio-me novamente imaginando

quantas pessoas deliciam-se mutuamente

E em nada esta solidão me é depressiva

Vasculho minha memória

e resgato histórias irreais

de amores surreais e improváveis

Mas os gatos continuam com seus afazeres

E são pardos os gatos que continuam com seus afazeres

Entedio-me e olho além

Os gatos entendiam-se também e vão-se embora

e me deixam livre

e sem gatos

V

Impressiono-me com a luz de um vaga-lume

e fico perplexo com a quantidade de

seres que habitam a noite

seres que vivem simplesmente vivem

e lutam para simplesmente viver

A luz que passa não arrasta vivências

detenho minha atenção num reflexo

de luz que brilha soberana por entre luzes

Sirvo de alimento

à insetos impertinentes

Um mini-assassinato torna-se evidente

mancho minhas mãos de meu próprio sangue roubado

e percebo inerte as horas insones que passam

VI

Uma pessoa cruza a rua dentro do campo de minha visão

me sinto vivo

e tenho pena de alguém que não está dormindo

Ao longe escuto um grupo

cantando uma canção romântica distante

vozes desafinadas e bêbadas surgem

e caminham espaçosos por um espaço pequeno-apertado

Luzes novas acendem-se e a campainha soa

Luzes piscantes levam vozes embora

e lágrimas e sorrisos escorrem paradas de cima da janela

Imagino este momento célebre e real

com uma emoção simples

e saudosista

aguardando um momento assim para recordar

Várias janelas se abrem

já não me sinto sozinho

mas me vejo único e impotente frente à sonolência do mundo

VII

Uma voz sensível me chama de dentro de um abrigo real

mas não me impede de

ficar a andar parado em meus pensamentos

E sigo em frente...

VIII

Descubro pelos telhados imagens pouco prováveis

e me divirto com a agitação possível

de um casal de namorados que se agitam no escuro

Isto, namorem!

Vocês não sabem quantas desilusões o dia

que irá chegar pode trazer

Ah! Quantas lembranças do tempo em que eu não pensava!

(Como se algum dia fiquei sem pensar)

Tudo acontece; tudo observo

e não tenho companhia para compartilhar

este momento

madrugada afora

Olho o relógio e não me sinto diminuído em não dormir

e ainda falta tempo para uma correria diária

e inerte que em nada me atrai

Deixo a noite passar em claro e o dia a vir

passar em escuro

Deixo o outro dia para o outro dia

IX

De repente penso em soltar um grito instantâneo grito solto

para acordar toda a vizinhança

e não acordo nem a mim mesmo

com um grito poético e inexistente

travado por um medo de incomodar e de me ver

impossibilitado de observar anonimamente

todas as observações que agora faço

e deixo para lá toda a possibilidade de um grito real

X

Continuo patético a sentir um vento frio

aqueço-me com uma velha blusa

que outrora fora fonte de orgulho

e admiração visível e coerente

a emoldurar e proteger células iguais

células fabricadas em séries

já não me sinto desconfortável

meu corpo reage bem e destrói

qualquer possibilidade concreta de sono

Fito novamente toda a realidade de perto de mim

e acredito entendê-la por inteiro

e nada agora me prende a atenção

volto às minhas viagens internas

XI

Ontem à noite a chuva impediu-me de ver

algo além da própria chuva que caía na vidraça

senti-me inútil e anônimo

e resolvi fazer algo inesquecível em uma noite

que não seja a noite que chove...

O barulho atormentou meu cérebro

e me vi deitado à beira do sono.

Dormi profundamente

Hoje não há chuva

mas também não caiu uma torrente de ânimo sobre mim

e esta noite continuará esquecível

como tantas outras.

Deixo a inesquecibilidade para outra noite sem chuva

e inesquecível

XII

Observei a lua mais próxima

e me vi jogado leve

flutuando por entre suas crateras

Me vi menos lunático, se flutuasse leve na lua

ao invés de flutuar crédulo por entre

imagens fabricadas em momentos insólitos

Observei uma coruja a me observar

e percebi

que muito ainda há para observar

Levantei novamente meus olhos e

senti-me pequeno e minimamente iluminado

A distância impede um maior crescimento

Impotente resolvo não mais levantar os olhos, momentaneamente

XIII

Uma ave me chama a atenção quanto

ao surgimento de novas luzes, fortes

Incrédulo, deixo-me invadir por esta realidade

e verifico que a noite está no fim

Barulhos de automóveis rompem o silêncio

Ruídos de civilização...; progresso

Correria anunciada

hematomas distribuídos a corpos e corações

tensões no que tencionam viver

trabalho, trabalho, trabalho

e pouco espaço para realmente ser

Continuo calado

e não engulo este ar que me chega

Prefiro respirar o ar pouco sufocado

de dentro de mim

XIV

No horizonte levanta-se um sol real

e eu deito-me em minha realidade esquecida

distribuo um sorriso patético e adormecido

inscrito num espaço estético cansado

Já não há mais escuridão possível para me ocultar

e toda (i)realidade criada dilui-se na luz crescente

no que diminui-se minha paixão

Cansado, há um dia sonolento pela frente

sinto-me ausente e indestrutível

Sensível alegria desperta

no que se passou...

10/02/2004