CERTA É A BARCA A ATRAVESSAR O OCEANO
José António Gonçalves
Certa é a barca a atravessar o oceano;
o resto é puro engano. Onde havia a arca
dos segredos, do achar as terras santas,
ficaram brasas nas plantas, a sorte dos medos
interpenetrando-se nas águas, marinheiros
destemidos, vencedores de mágoas e dos idos
de outras invernias. Nem contavam os dias
e com a morte na bandeira, à sombra da vela,
cumpriam a rota inteira, gabando-se sempre dela
na chegada aos portos. A demora da partida
dependia do saque; desprezando a vida, o baque
provocado pelo rasto dos mortos, voltavam ao mar.
Não olhavam para trás. Não havia ninguém
a acenar; perdida a paz, voltava o sofrimento.
Um perdeu a mãe, outro o filho, alguns o pai.
Incendiava-se o rastilho da guerra. Para o apagar
nasciam outros, semeados pela terra, onde tudo
se esvai. O sangue, o amor, a esperança, a poesia.
Certa é a barca a atravessar o oceano; o resto é puro
engano. Ninguém olha o horizonte ao meio dia.