MIL OLHOS TATUADOS NA MÃO
Tem gente para tudo,
todo mundo já ouviu falar.
Uns dizem que sendo erudito,
o poeta não é santo.
Outros difamam: sendo inteligente,
o poeta deve ser feio.
Os vis afirmam seguros de sua maldade
que o poeta está nu
porque não veste nada
que vale a pena
erguer-se de sua vergonha.
Cada qual diz sua verdade
negando para se proteger
da palavra que corrói,
reconstrói e traça.
Na realidade, o perfil do poeta
é o mesmo do asceta.
Figura cubista
do homem viril
sobreposta
a do profeta
que no silêncio
também chora.
O poeta chora.
O poeta ri.
O poeta ora.
Ora, o poeta come,
defeca e ama.
Tem gana,
reza na cama
e evita igrejas
mas levita
no meio fio
de qualquer sarjeta.
O poeta anda descalço
quando pode.
Quando pode, não anda.
É quando escolhe
ficar parado, de tocaia,
para pegar o tempo no pulo.
Quem mais respeita convenções
depois dos advogados
e dá mais valor a um artigo?
O poeta, quando não pode,
se sacode.
Se pudesse, o poeta andaria
mesmo nu
mas
a maior parte das outras vezes
se despe
vestindo o rigor da forma porque
ama amar de verdade
a faculdade
de saber quem não é.
Mas há quem diga o contrário
(todo mundo já ouviu falar)
que poetas
não andam descalço,
que não defecam, nem comem.
Que são feitos de plástico
e então seriam flores sem cheiro,
guardanapo limpo
caído da mesa.
Mas eu que não sou isso
nem sou aquilo não creio.
De fato,
para todo lado que olho,
me vejo.
Contudo, a derradeira
conclusão
é que todo poeta mente.
Quando diz uma verdade,
o profeta finge e o asceta foge.
A tríade é, sendo sincera
enganando toda gente,
tão triste quanto verruga
num gerúndio.
Uma esfinge plantada na grama
ou o vazio
para mil olhos tatuados na mão
que vai fundo no alforje.
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Baltazar Gonçalves