Enquanto aprendo a morrer

ah! se houvesse uma noite

para descansar o cansaço de sempre ser

pensamento

eterna memória

passado

o grito na margem abandonado

o enredo ou soluço das naus sucumbidas

a luz acendendo o porto na tarde devagar

o silêncio e a sombra amoldável

tudo sufocado

sendo só

sendo só

enquanto se aprende a morrer

com o limo verde dos rios

com o gesto noturno da flor desfeita na espera

com a canção doída do mar a solfejar nos rochedos

ah! se houvesse uma noite

para descansar o cansaço de sempre ser

nuanças e sussurros das águas mastigadas

ah! se houvesse a noite inconsolável

o prelúdio do lamento de tudo que não esqueci

a tarde incendiada

pelos perfis amarelos e ardorosos dos girassóis

a lua nova num céu intrínseco e túrgido

o ritmo suave dos meus versos intocados

lembranças de quando eu era criança

as mudas inquietudes das noites tocando em mim

o choro e o soluço sufocante

os seios róseos de Pingo

duas rimas de poesia

me ensinando a morrer

dois versos a cada dia

ah! se houvesse a noite inconsolável

e depois do rumor da noite a morte se fazendo

redimida e arfante

quando eu aprender a morrer

e de tanta melancolia

a morte se faria

nua e vã

como se faz poesia

rascunho escrito no cerne da areia

palavras atravessando o destino

esperando o momento dilatado

do sonho do sonho de ser menino

desenhado no espelho

cubo de vento

caminhos gélidos de fogo

e segredos

estou só

nesta vida emprestada

o tempo passou

e o que é de meu é coisa alguma

é a trapaça do tempo dizendo nada