Outro tempo

mais um agosto

desmedido em dias e noites

ilusões e atalhos irreais

que me trouxeram até aqui

na batida surda de um tempo antigo

e que já pressentem-se

como amantes

ao início próximo da primavera

a alma despe-se dos enganos da vida

ainda traz na tessitura do ser a brisa inebriante

e o perfume das flores noturnas

e o plangente repicar dos sinos

meditando a imprecisão das horas

e a pulsação da vida

o campo florido do verde dos pirilampos

que se estende e ilumina a noite ditosa

vem da candeia

de um céu cintilante

rendilhado de flamantes

estrelinhas mergulhadas no ocaso

a lua traça no céu

um arco de linha nacarada

sobre o fundo negro que se

ergue dos montes adormecidos

na noite diáfana

-demora-se a chamar-me

fica no ar o som palpitante das palavras

e suas ausências doridas

se escondem

e tanto de melodia

se esvai

na armadilha derramada do dia

a poesia dorme, concisa,

no colo nu das folhas úmidas,

nos braços enrodilhados dos pingos da chuva,

que desenhavam arabescos nas janelas

e levavam a minha e a tua vida

como o incansável dizer adeus

uma ave adeja na noite sem nome

solitária, atravessando os fios finos dos rios

chove

e o pássaro traça a hora carmim de um momento sem fim

chove

não a chuva que chovia dolorosa

nas ígneas gaiolas abertas da infância

entoando nas paredes do sonho

o som molhado e ritmado dos pingos

hoje a chuva não cai sobre os telhados

e não junta seu som

ao som bom do barro das telhas

hoje a chuva não escorre

pelas ruas de terra

nem pela sombra negra,

indefinível,

áspera e sibilante do crepúsculo vermelho

não deixa no ar o olor quente

de terra molhada

e dos passos embriagados que caminham

sobre as águas inexequíveis

não há canteiros

nem flores

nem cores

onde vicejava a eternidade dos sonhos

e da vida

que a chuva, então, avivava

hoje a chuva é o instante

sem a cor do sonho

sem as memórias e as histórias

e as fábulas

interminavelmente azuis

da imaginação

que pasce num mundo

onde a semente espera latente

e longe dos segredos dos meninos

reprisados noite após noite

o momento passou

trazendo a obscura noite dos sóis

sobre os quintais

busco em mim

o que eu fui

o que eu era

esta não é a primeira primavera

nem a última lenta agonia

que os meus olhos soluçantes

vêem passar

busco-me entre as flores do passado

lá onde a vida nunca deixou de ser jardim

onde as flores balouçam, suaves,

aos pingos da chuva

e que balouçam, também, os labirintos do meu mundo

oh, doce flor do jasmineiro,

a tarde chora outra primavera

espargindo aromas voláteis,

derramando folhas e flores

levadas pelo vento

para além das palavras e dos signos

e do encantamento

outro mar

caminhando para as areias

outro tempo

desapegado e incomensurável

entre as mãos

molhadas de ventos e de cores

outra solidão

com a qual finda-se o dia

e começa outra poesia