Murmúrio lento

murmúrio lento

a noite é a impenetrabilidade do muro

a noite é o gemer infatigável do vento

a noite é uma fogueira de ébano e prata

me chamando

nesta noite posso ouvir o mar

e me embalar no mar

precário mar

e me embebedar de mar

anacrônico mar

e sentir a candura gélida das espumas das ondas

e morrer-me o pouquinho que se morre a cada dia

ouvindo o mar que murmura em infrangíveis rochedos

a água e o sal escorrendo pela pedra,

escorrendo pela noite silenciosa e plena

escorrendo dentro de mim

o som das ondas clareiam

a noite fulminada pelo escuro

e o imenso cansaço irremissível dos meus olhos

no silêncio sem fuga da tua ausência as palavras inventam perguntas

quem é esta que ficou subsistente no retrato inútil?

fútil?

quem é esta cujo nome ondula como miragem no calor do deserto?

de quem são estes olhos que vejo quando fecho os meus olhos?

quem é esta que ficou como uma anotação,

esboço para poemas impossíveis?

já não sei

já não sei de quem são os passos tristes que andam em mim

já não sei da inquietação dos meus caminhos invioláveis

já não sei

se tudo foi ilusão

já não sei se eram mentiras

ou jardins famélicos e delirantes do coração

e suas flores fictícias

recendendo no ar este perfume dos gestos

deserdados

tocando de leve

o passado lambendo a minha mão

agora ficam as entrelinhas

fica esta saudade mendiga

ficam, latentes, os poemas a escrever

e esta tristeza que regressa

tão quieta

pressentindo o momento de te esquecer