Outono em maio

manhã de outono

a névoa,

como um lençol de renda,

cobria os ares frios da manhã de maio

fazendo tremer o dia lá fora

a manhã sem vento,

clausura das horas,

deitou-se com a lua

e o sol,

nascendo como "en el sueño",

esqueceu-se a habitar os lilases

que, despertando, desenhavam o ar

fina adaga

que atravessava as nuvens

demoradas e cegas

e que perpassavam

uma a uma

como soluços de uma dor

como o tempo incerto

habitando dentro dos séculos

como o dia de outono

que a minha solidão vislumbrava

do outro lado do espelho

de onde alguém que eu não conheço,

ensimesmado,

me olhava para além de mim

os olhos carregados de passado

e de destino

tristes olhos

são agora neblinas

um dia sonhei que eu era

todos os sonhos de um menino

que ainda insistiam em sonhar-me

nesta manhã de maio

como os pássaros que olho

pelos vidros da janela

e são tão reais quanto o instante inominável

que passa

desfazendo o meu olhar

como a praia, singular, desfaz a onda

e o pássaro desfaz o ar na tessitura do vôo

repleto de silêncio e tempo

e de ilhas subindo da tarde rumo à noite

oscilante de tanta estrela,

constelações,

desertos onde a lua é de impenetrável beleza

e tudo aquilo que escapa da textura da noite

é encanto durante o dia nácar

de um maio róseo e marfim

as gotas de orvalho esplendem ao sol

e rolam pelas folhas

flutuam

e caem

arrepiando a terra no imerso do toque

transparente

fica em mim este áspero aroma da terra úmida

da terra que o orvalho molhou

é maio

e me embebedo impunimente

desta manhã

das fartas cores da aurora

e do vozerio dos pássaros

às seis horas da manhã

subtexto dos meus olhos

e da tua voz tardando a se exaurir dos meus sentidos