QUATRO POEMAS SEM ALMA

QUATRO POEMAS SEM ALMA

1

queria escrever como se eu não fosse eu

como se sequer alma tivesse

e nada que escrevesse pudesse ser-me imputado

retirar minha humanidade dos escritos

para neles ler somente a informação necessária ao leitorpor isso

e enfim, sem subterfúgios, lhe falar diretamente

pois toda a felicidade requer distração e inconsciência

mas também olhos ávidos para ver o que é bom

por isso aqui procuro versos que não planejo

e que me levem, distraído e inconsciente,

à felicidade não planejada.

alegria de não sentir dor ou amor

e saborear as coisas à medida que se apresentam

degustando sem adjetivos o que não tem nome

2

atravesso a rua para o trabalho

e chuto a pedra no meio do caminho

não há glória ou tragédia nisso: é só uma pedra

não deixo margem para que interpretem isso ou aquilo

mas convido o leitor a me acompanhar na minha vidinha

sem tentar lhe iludir de que seja algo extraordinário

leio e me interesso pelo desinteressante

que impinjo ao leitor ludibriado

sem grandes verdades a ler poemas sem alma

enquanto lhe desafio a abandonar o texto

a cada verso insensato

atravesso a rua para o trabalho

e chuto a pedra no meio do caminho

eu e o leitor sabemos precisar de uma história

cujo desenrolar nos leve a algum lugar

e preencha as horas vãs da existência

todavia eu lhe ofereço não uma fuga

sim o confronta-se com o vazio

de poemas sem alma

3

não subestimo a beleza

tanto quanto não sou insensível à dor

sou grato pelo que me fizeram de bom

e ressentido das violências que sofri

mas não vou fazer outra miscelânea

no afã de oferecer memórias alheias

àqueles que evitam as próprias

escrevo poemas sem alma

não escrevo para salvar ninguém

ou moralizar a sociedade de meu tempo

não tenho grandes ensinamentos

tampouco lamento terríveis desgraças

o extraordinário nos excita

mas é o comum a matéria da vida

escrever sobre o comum com desinteresse

esvaziado de qualquer pretensão

é a única verdade em que acredito

é a única sinceridade literária que busco

4

não me ocorre dar ao ofício de escrever

as pompas que se exigem outros ofícios

sequer cobro algum vintém para que me leiam

afinal, como dar valor ao que não tem preço?

melhor que seja de graça

sobreviva eu de outras coisas

e deixe nas páginas brancas irrealidades

embora me deseje desilusionista

e insista em lembrar o leitor todo o tempo

de que nem tudo é verdade

seja isso por hoje

Betim - 16 11 2017