DISCURSO DO MACABEU

Ouçam-me,

eu sou um macabeu errante

de uma terra que era minha

fizeram-me retirante porque

dizem ser prometida à elite

*

ouço

o maldito político reclama

diz que o povo quando fala

tem Deus no gogó - mentira!

pobre não tem voz nem rosto

é peixe de pesque-e-solte

fisgado volta ao raso do lago

para ser pesca velha de novo

pobre

é isca

cardume grande de peixe pequeno

é isca no anzol para peixe grande

por isso meu povo tem tão pouco

morremos

de susto um dia de cada vez

mas

temos

entre os dentes uma lâmina

de corte cego bastante velha

ao sol

brilha

é ponta

aguda

de metal

frio na

boca

*

para quem o céu é o limite?

para a isca basta a fome

e nenhum senso do perigo

ou que seja tola, tapada

burra, tonta, uma porta

mas que saiba sorrateira

esgueirar-se mole feito

enguia em água morna

e nadar e nadar e nadar

até que sua voz se cale

*

poder macabeu até pode

mas de quando em quando

quando come tanto

que se empanturra

farta-se na lama escura onde caga

e nunca se afoga porque pula fora

quando a água morna esquenta

*

ser feliz macabeu até alcança

só quando toma um copo

ou quando joga porque

tem fé no amado time do coração

então faz torcida

e grita ‘feijão, feijão’

mas que azar...

acertou os números

perdeu o bilhete

salta alegre da sala à lama

suja a cama, suja a mesa

reclama, reclama, reclama

mas da suja calha bebe

esganado água podre salobra

*

de quando em quando

macabeu goza, faz filhos

mas não surta, reza reza

reza, macabeu sou eu

não posso me dar ao luxo

economizo no vômito

guardo para mais tarde

baba da riqueza festiva

bobo da corte posa

do lado da loira gelada

e se engana: cerveja-religião

é genuína droga barata

ópio, um bar e duas igrejas

novas em cada quarteirão

*

oh povo triste o povo macabeu

geme e rema, e nada, e nada

prostrada tímida estrela opaca

sem brilho o metal tine

entre os dentes tine a lâmina

o anzol rasgando a boca tine

*

segregados uns e outros

ouvimos, repete quem disse

‘meu povo, acalma,

esperança não morre”

- mentira!

*

somos macabeus, retirantes

distantes do prometido céu

o cardume segue para a rede

esquecido da velha lâmina

afiada que tem cada peixe

entre os dentes podres

esquecido da força bruta

que separa

do eleito cada um dos meus

*

*

Baltazar

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 11/11/2017
Reeditado em 14/11/2017
Código do texto: T6168843
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