ODE METIDA A BESTA

Celebra, sim, celebra o sol e a vida
Na língua em que essa estância se insinua,
Mais pura que promessa ou despedida
Em tudo quanto é bela, a vida, e crua
Ao sol, nessa estação que se quer sua.
O instante é contingência dos incêndios
Sonhados, é esse rio irredimível
No qual submerge o gesto desprezível
E o tesouro imprevisto nos compêndios.
Professa o fluxo exato e tão sem quebra
Quão longa a vida mesma que celebra.


Há dúvida e motivo em demasia
Em dias sem memória, surpreendidos
Nos escombros mais óbvios, na afasia
De mensageiros jovens e perdidos.
Queixam-se velhos e recém-nascidos
À margem de suspeita pertinente —
Durar, por si, será resposta ou chave
À questão mais incômoda, a mais grave...
A brisa que os afaga é indiferente.
O tempo, em todo caso, é mais afoito
Que esse relógio morto à Praça Oito.

Há pássaros e flores nos subúrbios
De outubro, há uma alegria que só inspira
Suspeitas – seus sorrisos são distúrbios,
Revérberos de multidão, mentira
Despercebida em meio que delira.
Um bêbado o saúda e pouco importa,
Os sóbrios não serão menos patéticos
Com seus discursos e flatos estéticos,
Tédio – é a razão que aqui por fim se aborta?
Há mesas nas calçadas da rotina,
Mas quem suporta gente tão cretina?

Dizer que se enclausura é o eufemismo
Mais óbvio – canta e o canto é tal procura
Que dura além do mero ilusionismo,
De guardas vãs e mantras da fofura –
O canto é risco, rascunho e rasura.
É tudo uma questão de estar atento
A si no que de si o seu ser transcenda,
A voz que ecoe o inteiro vale, a lenda
Oculta em tantas vozes pelo vento.
Percebe o teor de ofício tão sutil
E alguém ainda pergunta se “partiu”.

Prefere a torre ao porre, assim digamos,
É o luxo, a afetação metida a besta
Que lhe custou mais farpas que reclamos,
Ausências e distância no que resta
Duma tertúlia surda que não presta.
Ousasse a fácil máscara do alarde
E a escória ainda seria a mesma em tudo.
Melhor ser bárbaro que ser tão mudo
Quanto o Pio XII à praça, ou ser covarde.
Melhor assim, que à ilhota é falha a súplica
E aqui até a musa é funcionária pública.

São dias de silêncios entranhados
Em desconversa aflita – nos limites
Da cidade há mais cães que os encontrados
Em coleiras de velhos com artrites.
Há janelas com pregos e rebites
E portas reticentes rua acima.
Da varanda à nostálgica sacada
Em cada casa a fuga acostumada
Corrobora os requintes desse clima.
Dirá que o tempo estanque numa praça
Engendra um golpe sujo, uma trapaça.

Rumores há, de poças e sarjetas
Loquazes prevenindo tempestades
Em taças de engolir em seco, abjetas —
Buxixo entre compadres e amizades
Que duram, logo deixarão saudades...
Alheio à algaravia, ao burburinho
Deslumbrado que há tanto já não via,
Insiste nas recusas e, por via
Das dúvidas, prefere a àgua ao vinho.
E as tardes nunca foram tão amargas
Nos bancos sujos da Getúlio Vargas.

Desdém pelo que passa ou só estilo,
Cumpre dizer do agora, que definha
Em chama breve e nunca obstruí-lo
Em vão, por fraco ou por canhestro, linha
Perdida em labirinto que a mantinha.
E o dia celebrado é consumido
Na urgência de apanhá-lo, afã neurótico,
E enquanto vai durando o sol despótico –
No após, também, sabendo a não ter sido.
Celebra, sim, seus dias nesse enredo
Avesso às imposturas – e ainda é cedo.

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Israel Rozário
Enviado por Israel Rozário em 15/10/2017
Reeditado em 18/10/2017
Código do texto: T6143244
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