Poema de aniversário
Já escrevi poemas de aniversário, mas nunca, em tempo algum, no meu aniversário. E se o faço neste, isso vem de me saber, mais do que antes, viva pr’além de mim.
E de ser assim, tão a partir e através, e tão água viva a redobrar em mim o curso e o furor da existência, a partir de quem me chega, eu queria, se assim pudesse, presentear a todos que cruzam o leito do meu rio.
E nesse presente, que transborda o tempo, eu daria a cada um e todos que molharam meus olhos, ao longo dessa vida, o despertar do meu primeiro choro e a espera nele contida, por aqueles que me amaram, antes mesmo d’eu nascer.
E daria o encanto dos meus olhos e, antes dele, o espanto dos meus ouvidos ao ouvir e ver o mar, pela primeira vez. E daria junto o peso invejável da roupa molhada, da menina que corria inebriada pela sensação de tocar o infinito.
E daria aos que já passaram pelo meu abraço, o abraço que veio antes, e me ensinou o que é um corpo doado a outro corpo, o abraço de minha mãe, quente e arvorecido, capaz de assegurar, na assinatura verde-folha de seus olhos, que o fim e início dos tempos seria uma explosão cósmica de outono e amor.
E daria, com gosto, o gosto único e irrepetível da liberdade de meus pés descalços na enchurrada das chuvas em que corria minha infância no interior, modo de ser d’eu sempre habitar lugares interiores.
Iria junto, o tremor do primeiro beijo, nas pernas se ausentando de um mundo que crescia na trama de línguas que se escreviam sem saber palavra.
E daria o horror esplêndido da primeira vez que ouvi a nona sinfônia de Beethoven e a duração do gozo que se segue interminavelmente a cada vez que leio com o corpo um poema do Vinicius.
E daria o movimento atônito e abismado de minhas mãos, manchando de mim a brancura do papel, na primeira vez que escrevi um poema, num caderno de pauta, encapado de papel-veludo-vermelho, onde escrevi, em letra cursiva e tombada, do chão para o céu, como o fogo de um vulcão, a palavra Sentimentos.
Inda daria a indescritível e mágica dor de sentir meus filhos saindo do meu verso e traduzindo, no colo leitoso do meu peito, o signifcado intraduzível da verdade.
E mandaria entregar, pelos carteiros e floristas, para reproduzir, se assim me fosse dado, a supresa com que me amoleceu os ossos a chegada de cada poema, em palavra ou pólen, e a sensação dos meus poros se dilatando e meu rio, em cheia, transbordando dos olhos, para que cada um tivesse junto de si uma fonte inesgotável de poesia.
E faria chegar o sorriso dos meus filhos, na primeira hora da manhã e o cheiro do café esparramado na casa, no milagre renascente das tardes, quando aconteceu, um dia, do mundo inteiro pousar no Aleph, reescrito ao som de uma voz e ao movimento deslocante dos lábios que nem Borges, em sua cegueira-vidente poderia prever.
E ainda, quem sabe e coubesse no presente, não fossem essas coisas desde sempre o por vir de cada instante e sua morte, eu enviaria a minha morte, dentre algumas tantas, uma em especial, quando morri, de morte morrida, só para que eu pudesse enviar, junto com essa morte, o heroismo da minha fé a lembrar a todos os meus afluentes a que fomos feitos: esse dom do movimento que nos entrecruza, em nascimentos e mortes.