CANÇÃO DE PRIMAVERA
Eu sou o Espírito – sou na matéria
A força, o tempo e a dor de cada espera
Que o humano sequer sonha por mais séria
Que em glórias lhe pareça a vã quimera.
Indiferente à ofensa, à vil pilhéria
Das civilizações, desdenhoso da fera
Bem como da mais mínima bactéria,
Alheio ao estéril bem como ao que gera.
Eu sou o Espírito – sou o deus que fere a
Desprevenida paz da primavera,
Sorvendo rio, arroio ou artéria
Inespecífica da biosfera.
Estou no umbral, no pórtico – a miséria
E a glória ignoro, os girassóis e a hera.
Desolação da aldeia, e o Ignoto acima,
O estrondo da razão, não voz que mime,
Eu sou o fôlego impessoal que anima
O misericordioso gesto e o crime.
Eu sou o capricho obtuso desse clima
Varrendo vidas, dor que não se exprime,
Arcano que destinos pouco estima,
Eu sou o mister do acaso mais sublime.
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