A GAVETA ABERTA

algumas cenas da infância, quase adolescência:

eu, sentado no barranco, vendo os moleques

que jogavam futebol melhor que eu

a inveja me corroendo como ácido

por não ser o delei, o baianinho ou o paulinho

ouvindo distraído, george benson, gal costa

e gilberto gil. que meu irmão ouvia

e também led, belchior e sá e guarabira

que meu outro irmão ouvia

e mais beth carvalho, tim maia, bebeto

e kc and sunshine band

que um terceiro irmão ouvia

ouvindo os programas do zé bétio e gil gomes

que minha mãe curtia no rádio

eu deitado em cima da laje de casa ouvindo

o alto-falante do parquinho ou do circo

que tocavam sem parar raul seixas, antônio marcos

agepê e roberto carlos

eu deitado em cima de casa pensando na dulcinéia

ou contando vantagem na rodinha de amigos

no portão de casa ou da escola

emocionado depois de defender um pênalti

na final do campeonato de futsal

a vertigem de ver meu irmão com o joelho aberto

depois de uma queda

a primeira vez que dancei com uma garota

o primeiro beijo

a primeira transa

naqueles tempos, um comercial de tv dizia que

o primeiro sutiã a gente nunca esquece

até hoje me lembro do conjunto dela,

calcinha preta e amarela, combinando

lembro que não fui à festa de formatura do ensino básico

e ainda agora lembro que fiquei a noite inteira acordado

odiando meus pais porque eram pobres

e não tinham grana para pagar um terno barato

e o convite pra festa

a primeira vez que vi uma pessoa morta, a dona vilma

descansando num caixão; eu tinha seis anos

e aquele homem moreno, caído numa poça

na esquina da rua da escola, um tiro certeiro

furo seco no peito (a chuva fina que caía

desmanchando o jornal que o cobria)

justamente quando voltava da excursão ao playcenter

e eu só tinha 9, talvez 10 anos

e o meu tio e meus primos, de quem não lembro os rostos

e morreram num acidente

quando iam passear na caverna do diabo?

e teve aquela professora do segundo ano,

a primeira pessoa, depois da minha mãe

e da minha avó, a me chamar de lindinho

até hoje choro quando lembro que chorei naquele dia