ESPELHO INVERSO, DISTORÇÃO
sou possivelmente
uma coisa onde o tempo
deu defeito.
Ferreira Gullar
Neste barbear repetitivo, encaro
O que quero esquecido.
Imagem exposta, vista, à vista
Quando a quero esquecida.
Pois ela não mostra, no reflexo
O que de fato desejo: ser outro.
Vejo apenas distorção
Um corpo falho e velho.
Há cabelos demais em lugares desnecessários,
Pouco cabelo onde realmente anseio.
Olhos muito castanhos
Faltam-lhe um pouco de verde ou azul.
Barriga grande, corpo desproporcional
Incômodo, desengonçado, um templo desmoronando.
Nada salva, nada!
Tão desgostoso a vida inteira.
Nunca gostei deste reflexo torto
Desde a infância primaveril, nunca me achei ali.
E quanto mais o tempo passa
Mais distorcido fico, meu olho é quebrado.
Um caco humano, farrapo
Refletido por inteiro numa lápide laminada.
Nunca me amei, sempre odiei o espelho
Somos inimigos, um fardo um ao outro.
Toleramos nossos horrores mútuos, cheios de asco
Esperando ver, qual de nós, quebrará primeiro seus ossos.
E eu, terrivelmente sei quem será. Ali, no espelho
Só a lágrima distorcida é verdadeira, e de fato, minha.