O FARDO

Epígrafe:

Cá estou eu no meu tempo,

olhando o mundo lá fora.

Lá, tão igual aqui dentro,

que eles são “eus” agora.

E eu sou eles sem tempo

pra refletir se ali dentro

não vai o que vem cá fora.

O que levam, tão pesado,

certamente é o que me pesa.

Levamos todos um fardo,

mas que não temos certeza

se é nós ou se é o fardo

que pela vida nos leva...

É pesado demais, meu pai.

Insisto: é pesado demais e eu não resisto!

Trago as mãos em carne viva,

A sola dos pés ferida

E só pedras, mais pedras onde piso.

Trago as costas ardendo feito brasa...

Braços, pernas, pescoço, tudo em chaga

E esse peso infinito, sem alívio.

Trago os ombros banhados por salmoura

E só pedras, mais pedras onde piso.

É pesado e esse peso é infinito...

Pesa ainda a visão do feio rastro

Porque vou me deixando em mil pedaços

E o que deixo sou eu todo em martírio.

É pesado demais (mais que a idade!)

Esse peso a que chamam de saudade,

Mas que eu mesmo não sei o que é isto.

É pesado, bem mais do que a distância,

Todo o fardo da farta ignorância

Sobre a carga da humana estupidez.

Pesa a máscara torpe do político

Que disfarça de novo o velho circo

E o povo imbecil paga outra vez.

Pesa ainda lembrar que eu me calei

Quando vi e fingi nada ter visto.

Pesa muito, pois não denunciei

E fui cúmplice e tolo também nisto.

Pesa muito, Senhor, a estupidez.

Pesa mais, muito mais, quando aplaudi

Porque tantos seguiram por ali

Espelhados em mim... os iludi

E fui eu o culpado dessa vez.

Também pesa a lembrança

De quando me esquivei.

Não fiz parte, não fui, não vi, não fiz.

Pesa a mão que lavei quando encardida...

Pesa a mancha que trago pela vida.

Estou sujo de mim e não me limpo...

Estou sujo demais, todo encardido!

E quem sou sabe muito mais que isto.

Estou sujo também do que não sinto,

Porque sinto que estou de fato sujo...

Pesa muito, demais, pesa o passado

E seu peso se torna tão pesado

Que interfere no sonho do futuro;

Pesa a mão que projeta cada risco

Ou que tenta apagar o antigo traço...

É pesado demais, muito pesado;

Pesa sobre o que sonho e não conquisto.

Eu não sei me limpar. Não sei. Não sei.

Pesa o sangue no rastro do chicote

Quando a vara do tempo abriu um corte

E a mão da existência não curou.

Pesa menos o que foi resolvido:

O desejo de jovem, a libido,

O prazer que era puro e sonhador.

Pesa hoje, doendo a dor que pesa,

A lembrança deixada na tristeza

Pela perda de tantos bons amigos;

Pesa a lama do vício que os soterra

Na armadilha da droga, câncer, guerra

E a esperança enterrada por conflitos.

Mais penúria, mais fardo, mais martírio.

É pesado demais, meu Santo Cristo!

É pesada a ciência que guardei,

A que eu mesmo cavei nos meus garimpos...

Pesa mais o que sei - porque eu o sinto!

Mas também pesa aquilo que eu não sei.

Pesa à alma, ao corpo, ao espírito.

Pesa achar no caminho, todo dia,

Tanta gente vulgar, pobre e vazia,

Usurpando um lugar ali no pódio.

Pesa ver que quem sabe fica à margem,

Que a excelência é chacota e, sem passagem,

É jogada no lixo da engrenagem

Quando o topo é tomado pelo ódio.

É pesado demais, Senhor,

É pesado demais e eu não resisto.

Não se encaixa em meus braços,

Não se ajeita em meus ombros,

Atrapalha meus passos

E, sem dúvida, tombo.

Granja Viana/Cotia, 30 de outubro de 2016 – 11h25