Vem, noite
Aproveitando que fechei as janelas e ignorei o que acontecia lá fora,
a noite desceu, quieta, rápida, e agora encontra-se esparramada,
tal um pote de tinta preta que trasborda.
A luz ausente na noite vai para os meus olhos, que, brilhosos
imploram. Imploram que me transformem na noite, extravagante, sem convite e mesmo assim presente, suja, sedutora, irresistível.
Com a noite, tenho fome em corromper. ME corromper, principalmente, esquecer toda a infância, todas as medalhas, todas as regras que segui, tudo o que acham que sabem sobre mim. Tudo o que eu acho que sei sobre mim.
Para afogar o passado insuportavelmente limpo, quase pálido, basta pouco. Eu me basto, sozinha, com imaginação e vermelhidão no rosto.
Mas alguém que presencie a morte de todas as outras Amandas, o nascimento vermelho, sangrento e orgásmico de uma nova alma num corpo velho, torna o evento cada vez mais supremo.
Alguém, ou a noite, que me conhece e me sabe
como aquela que deseja mas balança a cabeça
em não. Com medo das mortes. Com medo do nascimento ser em vão.
Vem, noite, espanta os medos, alimenta as vontades,
e me coloca, finalmente,
como alguém que realiza verdades...