O retrato do político
1
Esqueci de te contar
ontem, meu amigo...
As raízes do tempo
se desprenderam
e eu tombei na rua.
Ficaram sujas a roupa
e minha inevitável hipocrisia.
Como o sol já se extinguiu,
tu bem o sabes, a verdade
faliu, em meio a versões
perdida, tudo pedindo
alguma radical saída,
mesmo talvez a bomba
de núcleo de plutônio
(ou uma batida de coco... sei lá).
2
O político olha o retrato
no móvel indefectível, polido.
O semblante inspira confiança.
Nele se vê a insaciável vontade
de mudança, de arriscar o novo.
Assina o cheque, fuma. Pensa.
Vê outro retrato mais à direita.
Os óculos, com armação já dourada,
brilham e ofuscam os olhos já lassos.
Quem sabe deles poderia talvez
pingar uma gotícula de dolorosa
lacrima, mas cristalizada.
O ponto de de interrogação caiu
do forro sobre a cabeça do político:
Quem fui, quem sou, quem serei?
Entra o assessor. O mais novo
retrato sorri, ironicamente.
Um sorriso de bolso cheio.
Aperta a mão da gente pobre,
ali no gabinete, sem convicção.
Sem dor pronuncia tortuosas
palavras em lugares-comuns:
Vamos à luta. Estamos aí
pro que der e vier. A luta continua.
A vitória é nossa... Entedia-se.
E o fim de semana que tanto tarda?
Este mais novo retrato caminha
no planalto, mais alto que plano.
Inatingível fora-da-lei, caminha
parado sob as quatro patas
redondas do Mercedes
que no conforto o leva às bases.
3
O celular comunica à família
a chegada deste mais novo retrato.
O narcotráfico planeja churrascos
e deles o político, não esqueças,
o-mais-novo-retrato, participará.
É relator, ele, de uma CPI
contra políticos corruptos. Comerá
pizza no avião que o levará
aos braços e abraços de mulher e filhos.
Meu amor, é triste ver o Nordeste
e a seca e a miséria. Papai, aquela
criança da TV tomou sopa de papelão.
É bom, papai? Quero experimentar!...
Este mais novo retrato do político
retira o terno, depois entra no banheiro,
faz a barba e reflete:
Já sei quem sou!