IRECE.

Você sabe onde é o céu?

Não é um azul ao leu

Nem um infinito posto

O céu é da cor da terra

No pé de qualquer serra

No riso de qualquer rosto.

Eu já tive o meu céu

Fui um xaréu

De um paraíso rude

Um céu, onde o grande trono

Se assentou um dono

De pouca virtude.

Irece foi a primeira dama

Que o sentimento aclama

Na praça da paixão

Foi cabocla "imperatriz"

Aquela que o anjo diz:

"Salve linda perfeição"

O céu era o nosso rancho

De palha e garrancho

Seco pelo chão

O trono era nossa rede

Presa na parede

Feita de algodão.

A vida era de sossego

E de um carrego

De amor sem fim

O mundo era eu e ela

No lume da vela

Em cama de capim.

Irece era uma princesa

Gema de sol acesa

Incendiando tudo

Era feita de encomenda

Vestida de renda

Lábios de veludo.

Assim o nosso paraíso

Ficava no riso

Dessa caboclinha

Garbosa cheirando a romã

Viço da manhã

Corpo de andorinha.

Já eu, um bicho sem raça

De feia carcaça

Um reles plebeu

Dado ao toco e a poeira

Sem eira nem beira

Pisando em breu.

De dia suava na luta

Sobre a terra bruta

Cultivando a rama

A noite voltava pra casa

Com o peito em brasa

Suava na cama.

Entre o céu e a terra

Muito pouco erra

A comparação

O céu é de prata e ouro

Mas sem o tesouro

Que tive no chão.

No céu tem a vida eterna

Onde o Rei governa

Toda a imensidão

No meu rancho eu tinha

Uma linda rainha

Do céu do sertão.

Quem dera ser um poderoso

Ter um céu ditoso

De alagadas ruas

Fazer uma chuva de prece

Pra molhar Irece

Com as costas nuas.

Irece foi mas que metade

Foi mas que saudade

Foi menos tristeza

Eu um anjo caído

De amor perdido

Por tanta beleza.

As vezes ficava calado

Num canto sentado

Quase sem ação

Vendo Irece sentada

Peneira apoiada

Catando feijão.

Feijão que nasceu feliz

Do talo a raiz

Da folha ao grão

Semente que nasce e cresce

Nas mãos de Irece

É mas que feijão.

No paraíso da gente

Cantavam contente

Os anjos de penas

Canários, juritis e gralhas

No alto das galhas

Em tardes morenas.

O céu tem nuvens e estrelas

Eu gosto de vê-las

Nos becos e ruas

Recordo Irece sorrindo

Com os olhos abrindo

Como um par de luas.

No céu tem cantos e hinos

E anjos divinos

Pra lá e pra cá

No céu que a gente morou

Um anjo cantou

Melhor que os de lá.

Irece cantou as novenas

Em noites serenas

Como uma levita

Cantou as modas, e ritos

Cantou os benditos

Como uma bendita.

Cantou o tronco ferido

De um pau caído

Pelo lenhador

Cantou a mata sem mato

O homem sem trato

Penando de dor.

Cantou o céu de nos dois

louvando os bois

E os pastos do chão

Teceu no linho da candura

Ela foi a pura

Hóstia da paixão.

No céu de Irece e meu

Um deus escreveu

Num sacro papel

E leu numa praça ungida

Toda nossa vida

Em divino cordel.

O céu de Irece e eu

Não é o que escreveu

A rica religião

O céu que a gente morava

A patativa cantava

Em verdadeira oração.

Nosso céu era pequeno

Onde caía o sereno

Nos sonhos da madrugada

Era um céu sem infinito

Onde se ouvia o grito

Da coruja assustada.

Era um céu de cumeeira

De telha e madeira

E amor imaculado

Um céu de galo e terreiro

Onde tinha o cheiro

De café torrado.

Porem céu e inferno

Verão e inverno

São a mesma moeda

Acho que cara e coroa

Foi a mesma pessoa

Que viu minha queda.

O céu que vivi sorridente

Hoje é ranger de dente

Onde tudo carece

Agora sou um pobre réu

Sem ter mas o céu

Que tive com Irece.

A minha dama do mato

Viajou de fato

De mala e cuia

Partiu pra outro endereço

Eu fiquei do avesso

Jogado na tuia.

Quando Deus fez Adão

Do barro do chão

Esqueceu a serpente

Depois que fabricou Eva

A cobra da treva

Surgiu de repente.

Com uma conversa afiada

A cobra danada

Fez Eva pecar

Assim no meu paraíso

Uma cobra de guiso

Botou pra lascar.

Creio que Deus criou tudo

E não me iludo

Com falsa manobra

Se a terra fundou

Ele não criou

A peste da cobra.

Irece assim como Eva

Repousou na relva

Seu corpo moreno

Recatada,inocente

Não viu a serpente

Cuspindo veneno.

Essa "mata e aleija"

Por pura inveja

Porque não merece

Ter a beleza que tinha

A minha rainha

Mordeu minha irece.

Antes de rosto corado

De riso aflorado

Fonte de alegria

Agora não é mas a cálida

Tem a pele pálida

E a face fria.

Perdi a minha pepita

Hoje me mim habita

Um anjo sem cor

Triste fraco e sem asa

Cinza sem ter brasa

Jarro sem ter flor.

Você sabe o que é o inferno?

Não é o fogo eterno

Num caldeirão fervendo

O inferno é não ter o céu

Um paraíso ao leu

Com um anjo sofrendo.

O inferno é a dor da saudade

Ter só a metade

Da alma vazia

É um enxofre de dor

Um divino horror

Numa vida fria.

Sou hoje uma terra sem nada

Toda esturricada

Sem o patrimônio

Cá dentro do meu peito luta

Uma guerra bruta

De anjo e demônio.

Ebenézer Lopes
Enviado por Ebenézer Lopes em 27/02/2017
Código do texto: T5925383
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