Não me cogite
Não me veja por um único ângulo. Nunca só um único ângulo. Nunca só me veja. Nunca por ângulos. Desconfie do que eu visto; esses tecidos prontos para rasgos, incapazes de resistirem a qualquer pastagem. Ignore o salto. Salte-o, assim também aos utensílios adornáveis que me escondem. Eu não sou útil como eles. Eu não sirvo. Não componho. Não tenho medidas. Sou inclinada a vazios
E buracos. Já criança, que criança é sempre já, cavava areia pra encontrar conchas e água, tão abundantes na superfície. Eu cuspia na superfície. E me enterrava no buraco do espaço. Sem bordas. Desde antes do lugar. E gostava da canção popular hoje é domingo, pede cachimbo, só porque a gente é fraco, cai no buraco, o buraco é fundo e acabou-se o mundo. E quando tudo parecia acabar, lá estava Alice, o coelho, o chapeleiro e eu, começando a ficar infinita e colorida...
Sim. Ao mirar, não despreze as cores porque elas escrevem alguma coisa sobre o meu sol submerso. Mas nunca me veja só com os olhos. As cores me queimam de febre e frio. As cores me derretem. Repouse os olhos e todo tipo de lente, com ou sem armação, para ouvir o silêncio do meu rosto. Veja as poças nas quais eu me sujo. Eu me sujo muito do mundo. Veja com as mãos o mapa do tempo achado porque perdido. E as linhas da sonata que eu entoo naqueles instantes em que nascem palavras que não se sabiam.
Não queira me saber. Não pense em mim. Nem tente a prova da minha existência. Não me cogite. Eu não sou dada a deduções. Me pegue com jeito e sinta se eu fiquei com cheiro de chuva. Percorra minha cantovia e repare se meus olhos cantaram. Abra meus poros e apure se eu virei mar. Leia meus pés e saberá dos meus chãos. Ponha palavra na minha boca e repare se cresce a minha fome de coisas vivas. Se velar minha morte, compreenderá, sem conhecer, os mistérios que nunca aparecerão no espelho...