AROMA DO PASSADO

Não sinto o aroma das maçãs. As laranjas, os abacaxis também estão inodoros. A toalha de rosto, rosadamente, seca à janela no fim de tarde. O sol insiste em afoguear os semblantes dos pedestres - ainda ontem, cinzentos e tensos. Esse mesmo sol, noutros tempos, lascivamente bronzeou nossos corpos desnudos e cansados, esparramados à vontade naquele gramado...hoje, tinge de tons alaranjados as últimas

mangas da estação, esquecidas nos altos galhos.

Como as peras e as goiabas, aquelas mangas não exalam o perfume adocicado de outrora. Ainda atraem, contudo, estridentes bandos de maritacas. Fazem festa nas mangueiras. Comem com estardalhaço e, saciadas, partem.

O suor escorre na fronte dos passantes. Vejo-os pela janela do quarto. Ao voltar-me para dentro, vejo-te a ressonar, cândida, na cama. Gotículas de transpiração descem fagueiras pelos teus cabelos. Cortaste-os curtos, mesmo sabendo que não me apraz. Cabelos longos têm seu charme e excitam-me fantasias, já o disse tantas vezes... sem me ouvir, cortastes os cabelos. Indiferentes ao meu pensamento, as gotículas percorrem tua face, tuas costas desnudas. Sinto teu cheiro e lembro-te, naquele gramado, contando planos, lendo poemas autorais. Julgavas-te poeta. Eu te elogiava, mas no fundo sabia que iludias-te. Desse pecado me arrependo. Para os outros, haverá perdão noutro plano.

Para me afastar dos devaneios, leio. Sentado na poltrona, os pés inquietos sobre o lençol, leio. Um conto sobre viagem no tempo. Penso em um provável não futuro, exterminado ainda a pouco por nossas imprudências, silêncios e mal entendidos. Um futuro, talvez, vítima de nossa insensatez. Indolente, remexes entre os lençóis. Viras-te, quase desnuda. O coração tatuado no ventre, provoca-me. Já não sei em qual parágrafo me perdi.

Caminho descalço no corredor: não quero que o flap flap das havaianas perturbem teu sono. Deixo o livro sobre a bancada da cozinha. Mastigo uma maçã. Mais uma, sem o aroma do passado.