Canção de despedida

é preciso cuidar de certas sujeiras da vida.

o resto de vinho no canto de tua boca que me espreita

o som de tua mastigação dura e contínua do outro lado da ligação

travesseiros embotados de lágrima,

minhas lágrimas;

a latrina que é íntima de todos na casa.

se aprende, vivendo, que mesmo na podridão dos dias atuais

há cheiro de coisa nova

e que

quando se morre,

as portas para a vida se abrem, novamente,

cálidas como as rosas (feridas) de Hiroshima.

crescer, meu amor, é descobrir

que minha raiva e meu impulso para a perversidade

além de traírem juntos a calma de meu rosto apático,

não passam de sinais de minha imaturidade para a vida.

e que para crescer é preciso engolir certos choros e continuar em silêncio;

que saber viver é ter sangue frio e

que terei sempre a vileza que têm os natimortos.

a vida, meu amor, a vida que me dizem

não sei vivê-la.

sufoco sozinha nas teias dessa realidade que me pede

copiosamente:

“acorde”.

a vida, meu amor, a vida que me dizem

é preciso mais de uma versão de mim

para vivê-la,

porque talvez mesmo três idênticas

não deem conta

do peso crepitante

que carrego

nas mãos,

nas costas,

no olhar

por não ser ainda

quem sou.

Taíse Dourado
Enviado por Taíse Dourado em 28/11/2016
Código do texto: T5837250
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.