A Revolução dorme na Periferia
Revolução nasceu na periferia, magrela e desdentada mal podia chorar.
Não teve forças pra mamar pela primeira vez no peito murcho
e já quase seco de sua (ama de leite), vizinha de parede,
que havia parido alguns meses antes uma dupla de desajustados
(como fez saber alguns anos depois a escola).
Ela, Revolução, cresceu em uma rua de terra agitada
no bairro mais violento da Zona Norte,
onde até o medo tinha medo de estar.
Lá não tinha nada (parques, praças, quadras, ruas asfaltadas, essas coisas) mas também não tinha nada de mais, era um lugar comum,
feito qualquer um, feito outro lugar qualquer.
Era lugar onde se podia encontrar a mais variada gente,
onde a alegria vivia cercando as pessoas
e a vida pulsava em uma intensidade diferente.
De fato, lá tudo era mais intenso! Os sorrisos, o choro, o cheiro de frango frito, a catinga da cachaça no hálito seco e duro dos bêbados quase mortos
caídos na calçada de qualquer jeito,
e o cheiro da erva, da pedra e da dor que ecoava da tristeza
dos olhos da mãe resoluta, sem saber o que fazer diante do excesso
que a intensidade do lugar propiciava.
Lá democracia era na (b) fala de quem pudesse se impor
e o silêncio a primeira lição aprendida já ao nascer.
Lá buraco era buraco mesmo, fundo, bem fundo!
E cavava-se até não ter mais como continuar
e quando o buraco já estava mudo,
criando impossibilidade de se continuar, cavava-se ainda um pouco mais
até o fundo escondido abaixo do fundo que existia no buraco,
antes desse se tornar cova. O que não era incomum!
De Revolução só se sabe os sonhos que contava baixinho
ao pé dos ouvidos da professora, única pessoa que ela confiou até hoje.
Uma senhorinha bem velha, com hábitos estranhos e vestes (alternativas)
que contava com orgulho ter pegado em arma nos tempos de escola
durante o período da ditadura militar, onde reunia-se com suas colegas
durante a noite, dentro de uma manilha abandonada na Rua Um
(primeira rua a ser pavimentada no bairro),
e lá tramavam subversivamente contra os desmandos do governo golpista.
Revolução lembra-se dos limões que chupava pra matar a fome
e do nó nas tripas que sentia sem poder gritar,
Revolução lembrava-se dos amigos e amigas que morreram mudos
e também dos que conseguiram a liberdade, ainda com pouca idade
na mão de algum salafrário abusador.
Revolução reconhecia naquela senhorinha a sua única saída,
se espelhava nela e em sua filosofia de vida,
a Educação tanto falada pela professora tornou-se seu hino da mudança,
sua única esperança de evoluir. Já que tudo ali parecia fadado a murchar.
As manchas brancas e a pele áspera de Revolução era dos vermes
e das lombrigas adquiridas no contato com a água podre
que corria sob sua casa.
Revolução cresceu faminta, lambendo os beiços
enquanto assistia o frango rodar na ilha de assar
exposta no passeio da padaria de seu bairro,
onde aprendeu desde muito cedo a se virar.
Aos treze anos, Revolução se perguntava por quem todos ali morriam?
E perguntava-se também, porque morriam tantos ali todos os dias?
Revolução era feliz, apesar de tudo! Talvez procurasse algo,
talvez não soubesse ainda o quê,
tateando sempre no escuro era mesmo difícil de saber.
Revolução já dava sinais de cansaço e andava meio sonolenta nas aulas,
já não se importava com as revoltas nas ruas,
nem se revoltava com as incursões da polícia na favela,
nem com a iminência da morte de seus amigos subindo e descendo vidrados, feito soldados, nos becos e nas vielas, nem com o cheiro de pó e pólvora
que impregnavam as suas narinas e oprimiam seus olhos.
Revolução incrédula olhava pela janela e sem poder acreditar via a vida diferente.
Mas não sabia explicar o que estava vendo ou sentindo
de repente, tudo que foi sempre torto parecia ter se endireitado,
parecendo fazer algum sentido.
Revolução sentia as juntas doerem e parecia ter os sentidos alterados
as pernas reclamavam o peso de seu corpo e os enjoos e náuseas acentuavam.
Já sem paciência, Revolução curvou seu corpo franzino
e em meio ao sangue que jorrava angustiante
por entre as suas pernas juvenis, pariu gêmeos
e sozinha no chão da cozinha do barraco nem lamentar podia.
E se lhe perguntassem quem era o pai... O que ela diria!?
Os dois filhos de Revolução foram criados pela professora
e cresceram e viveram até a vida adulta, e apesar da culpa,
todos entenderam a importância da luta daquela mulher.
Filhos (bem sucedidos) da Revolução
nasceram do ventre estreito de sua genitora,
mirrados, sem esperança e famintos, foram acolhidos pela professora
e apesar do karma em seus (DNA’s) cresceram argutos, espertos, astutos
e hoje lutam pra que outros também possam revolucionar.
Lutam para que outros vivam, pra que outros não se calem
ou seja silenciado, e se hoje vivem é para servir de exemplo,
ser espelho da Revolução que na periferia ocorreu...
Preta, catadora de lixo e guerreira que nos pariu e morreu.
Revolucionária do dia a dia que viveu e morreu um dia de cada vez,
que cresceu ouvindo a professorinha dizendo que quem luta e não se cala,
cala a fala de muitos e muda a forma que o mundo conforma
quando distribui a sorte e desenforma a forma
que o deus dos brancos escolheu.
Cresceu ouvindo a professorinha dizendo que:
- Quando a periferia tomar consciência de sua importância para a sociedade
veremos, nesse dia, o desencadeamento da maior revolução da história do Brasil.
E de tanto ouvir a professora moveu seu mundo e mudou o rumo de tudo, revolucionando o rumo que a vida preestabeleceu, seguiu em frente orgulhosa enquanto o futuro moldava o presente de toda aquela gente
que o passado estranhamente esqueceu.
Hoje dorme na memória revolucionária da periferia
que na história dos livros ninguém leu.