Sopro
Eu sou as noites de sono intranquilo
A flor no deserto árido
O pranto injustificado
Eu sou o agudo dos ventos de leste
A luz do sol em zênite
A desobediência da ordem vigente
Eu sou a morte da causa mais nobre
A injustiça da crença solene
As crianças que tremem de fome
Eu sou a contestação do conceito de belo
O gosto amargo do fazer prático
O renascimento do exoesqueleto
Eu sou a piedade dos condenados
O dia implacável do julgamento
Sou a mãe e também o desalento
Eu sou o atropelo das palavras dúbias
O paradoxo das lógicas gregas
O narcisismo dos corações idiotas
Eu sou o prelúdio das novas temporadas
O reflexo de antigas passagens
E os ciclos dos tempos indecifráveis
Eu sou ponto de vista e linha de fuga
O plano que organiza e embaralha
O que fica e o que muda; eu sou a sina e a mortalha.
Eu sou a tormenta do oceano pacífico
O templo onde tudo descansa
A embarcação no cabo da boa esperança
Eu sou a chance do futuro e a condição do passado
A perspectiva do caleidoscópio desordenado
O incrédulo, o acaso desenganado
Eu sou palco e plateia
A lenda milenar: Ilíada e Odisseia
O sal do mar da Galileia
Eu sou a guerra e o dano causado
A linha tênue entre certo e errado
O brilho nos olhos do desesperado
Eu sou memória e palavra não dita
A curva da história difusa e infinita
A matéria negra da estrela que orbita
Eu sou espaço, território e limite
A própria medida de tudo que existe
A certeza, a aposta e o palpite
Eu sou todo e fragmento
A partícula do pó no firmamento
A molécula da angústia que sustento
Eu sou a coisa disforme, névoa e concretude
A poesia sem virtude
A afirmação humana da finitude.
E se frente a tudo sou tão pouco
E a toda parte onde vou me creiam louco
Passaremos; a vida é sopro
Efêmeros; somos senão verso e corpo.