Sopro

Eu sou as noites de sono intranquilo

A flor no deserto árido

O pranto injustificado

Eu sou o agudo dos ventos de leste

A luz do sol em zênite

A desobediência da ordem vigente

Eu sou a morte da causa mais nobre

A injustiça da crença solene

As crianças que tremem de fome

Eu sou a contestação do conceito de belo

O gosto amargo do fazer prático

O renascimento do exoesqueleto

Eu sou a piedade dos condenados

O dia implacável do julgamento

Sou a mãe e também o desalento

Eu sou o atropelo das palavras dúbias

O paradoxo das lógicas gregas

O narcisismo dos corações idiotas

Eu sou o prelúdio das novas temporadas

O reflexo de antigas passagens

E os ciclos dos tempos indecifráveis

Eu sou ponto de vista e linha de fuga

O plano que organiza e embaralha

O que fica e o que muda; eu sou a sina e a mortalha.

Eu sou a tormenta do oceano pacífico

O templo onde tudo descansa

A embarcação no cabo da boa esperança

Eu sou a chance do futuro e a condição do passado

A perspectiva do caleidoscópio desordenado

O incrédulo, o acaso desenganado

Eu sou palco e plateia

A lenda milenar: Ilíada e Odisseia

O sal do mar da Galileia

Eu sou a guerra e o dano causado

A linha tênue entre certo e errado

O brilho nos olhos do desesperado

Eu sou memória e palavra não dita

A curva da história difusa e infinita

A matéria negra da estrela que orbita

Eu sou espaço, território e limite

A própria medida de tudo que existe

A certeza, a aposta e o palpite

Eu sou todo e fragmento

A partícula do pó no firmamento

A molécula da angústia que sustento

Eu sou a coisa disforme, névoa e concretude

A poesia sem virtude

A afirmação humana da finitude.

E se frente a tudo sou tão pouco

E a toda parte onde vou me creiam louco

Passaremos; a vida é sopro

Efêmeros; somos senão verso e corpo.

pedro toscan
Enviado por pedro toscan em 16/10/2016
Reeditado em 15/03/2022
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