Acorrentado

I

Que importa o espaço? Que importa onde estou?

Eu, que sempre fui estrangeiro

Em meu próprio corpo.

Eu, que há muito

Não tenho identidade com o mundo.

Para mim os lugares,

Tais quais as formas de um prelúdio de Chopin,

Desmancham-se em meio ao oceano

De meus sentimentos esquecidos.

Não! Não importa onde estou:

Belo Horizonte, Paris ou Pequim.

Que diferença faz?

São só espaços cheios de consciências:

Consciências de inconsciência.

Espaços de solidão.

II

Estou cheio de medo,

Sou escravo do medo.

Um medo brasileiro,

Sincero e contido.

Olho em volta: tudo morto.

Meu sonho é dor.

Estou cheio de medo,

Sou filho do medo.

Medo que é o porto

Onde sempre chego,

Após longas noites...

Noites de fuga e amor.

Estou cheio de medo,

Sou o medo do medo.

Tenho um medo besta.

Medo bastardo e podre,

Filho das mais nobres idéias

E do mais pérfido terror.

Estou cheio de medo.

Sou o Deus do medo.

III

Viro a página, reviro a vida,

Escrevo um verso...

Escrevo um poema

Sobre a dignidade humana.

Mas já não tenho esperança,

Já transpus a porta.

Talvez o poema possa

Ser tudo o que não fui,

Ou, talvez, não será nada.

Se for o que não fui,

Ficará tudo como está.

Se não for nada,

Talvez as coisas melhorem.

E se um dia o universo acabar,

Louvarei, com fé, a Deus.

IV

Não, não há pátria para mim.

Não há solo em que eu possa pisar

E não sentir correntes e bolas de ferro

Atadas a meus pés.

Não há sossego, não há cansaço,

Só uma dor que parece dor,

Mas que, às vezes, é boa.

Daquelas dores que nos lembram

Que corre sangue em nossas veias.

Que vivemos como deuses,

Mas podemos sangrar, podemos sofrer.

É uma daquelas dores que trazem à consciência

O conhecimento, esquecido, de que não é por natureza

Que vivemos ajoelhados,

Mas porque temos muito peso nas costas.

V

Açoita-me, à noite, um sentimento insano.

Sob a noite, descanso.

Sinto o passar das horas,

O naufrágio austero do tempo.

Sei que a liberdade é um sonho,

Não um caminho.

Percebo que não sou livre,

Pois sou igual aos outros,

E os outros não conhecem a liberdade.

Para além de meus versos

Ainda sou capaz de levar comigo um sorriso,

Nobre ao menos em sua consciência de ser apenas

Humano...

De ser apenas devir.

VI

Mas se a vida é apenas realidade,

Por que dizem que devo ser feliz?

A felicidade não é real;

Não é senão a vontade humana

De não ser humana.

VII

Minhas correntes sólidas,

Espessas e fortes como eu.

Entrego-me à palavra:

Com meus versos avessos a métricas,

Sussurro aos ouvidos de Deus

Minha poesia desesperada.

VIII

Tenho tido muita tosse.

E, no fim das contas,

A única liberdade é tossir.

Tossir, tossir...

Até que rasgue o universo,

Junto com meus pulmões.

IX

Ah, meus amigos!

Só posso lhes dizer que vivi,

Porque hoje me sinto morrer.

Não sei bem se morro,

Ou se meu corpo adormece apenas.

Estou acorrentado, sempre estive,

Sempre estaremos.

Já não sou capaz de dizer mais nada.

Já não tenho versos para o último poema.

Hoje, estou absolutamente objetivado,

Não sou menos coisa que minha camisa,

Talvez seja até mais.

Tento me vingar,em vão,do mundo

Tão alheio às minhas agressões,

Tão sóbrio e tão cruel.

Ah, meus amigos!

Mas vejo minha euforia aumentar,

Meu coração dilacerado por uma grandeza sem fim.

E torno a ser homem, torno a ser sangue.

Amarrem-me a quatro cavalos,

Despedacem-me, e então verão

Meu sangue anônimo correndo nas ruas.

Eu, órfão de ciências,

Adotado por metafísicas não-científicas.

Eu, que nunca fui o que vocês quiseram,

Que já não sou o que posso querer.

Eu, que fui ao inferno...

E me apaixonei.