INVEJA
Se ter inveja é pecado,
sujeito às penas do inferno,
de antemão me considero
um condenado consciente.
Trago acorrentada ao peito
uma inveja inamovível
que se arrasta nos meus sonhos,
que me fere e me persegue.
Não é uma inveja rasteira
de ciúme ou de pesar
pela riqueza dos outros
a mim negada na vida.
Não é a inveja do sucesso,
das honrarias e glórias,
que insistente persegui
no decurso de uma vida.
Esses ideais se apagam
com o chegar da velhice.
É a velhice que se afasta
dos valores do passado.
É a velhice se apegando
às glórias da vida eterna
onde o pecado não entra
nem mesmo a menor inveja.
Minha velhice, porém,
pregou-me uma grande peça
aumentando em mim a inveja.
Não é bem aquela inveja
que provoca na alma humana
um ciúme incontrolável
que apossa de nossa mente
e se transforma em doença.
Não é bem aquela inveja
que, a exemplo da erva daninha,
tenta sufocar valores,
por mérito conquistado,
por pessoas competentes.
Não é bem aquela inveja
que corrói o coração,
dos eternamente tolos
a ponto de criar neles
um ódio quase assassino
pelos valores dos outros.
Talvez não seja uma inveja.
Talvez só seja uma busca
por expressões mais corretas,
por um recurso de estilo,
por palavra colorida
que dá calor e dá brilho
à cadência da poesia.
Tenho inveja dos poetas
que herdaram o dom divino
de criar mundos de sonhos
recheados de beleza
e salpicados de amores.
Por eles eu consegui
conjugar o verbo amar
em todos tempos e modos.
Por eles eu aprendi
a viver intensamente
os momentos feiticeiros
que a vida concede a poucos.
Por eles eu aprendi
a decompor os meus sonhos
em suas formas mais brilhantes.
Por eles eu superei
meu natural egoísmo.
Vi nos outros a mim mesmo
fui mais justo e mais humano.
Porém o que mais invejo,
por seu valor inegável,
são os versos musicados
de renomados poetas
como Noel Rosa e Cartola,
Adoniram e Caymmi,
Nelson Cavaquinho e Ari,
Chico Buarque, Vinícius,
Roberto Carlos, Vandré,
Toquinho e Tom Jobim
e Paulo César Pinheiro
mais Paulinho da Viola,
Caetano e Gonzaguinha
e dezena de outros gênios
que transformaram seus dons
em patrimônios do mundo.
Obviamente pela idade,
sinto carinhosa inveja
dos poetas que se foram
mas eternamente vivos
nos xotes, baiões e sambas,
nas modinhas e nos maxixes,
nos sambas-canções e choros,
nas toadas sertanejas,
nas canções, quase esquecidas,
relembradas com carinho
por Inesita e Boldrin.
Invejo, acima de tudo,
poetas que extravasaram
seus amores, seus anseios
em valsas inesquecíveis
quais hinos de amor à vida,
quais preces de amor à Lua,
quais suspiros amorosos
de um amante à sua amada,
em noites de serenata.
São valsas tristes, dolentes,
nascidas no desengano
de amor não correspondido.
São valsas iguais a sinos
convidando o povo à prece
ao findar de um novo dia.
São valsas como ondas leves
embalando nossos sonhos
num mundo de maravilhas.
São valsas que em mim evocam
uma indizível saudade,
dos amigos de seresta.
Por tudo isso, meu bom Deus,
não renuncio à inveja.
Coloco em tuas santas mãos
a solução do problema.
Ou me condenas de vez,
às duras penas do inferno
ou transformas, se possível,
minha inveja em realidade
musicando-me uma estrofe
ou um versinho, se tanto,
que cantado pelo povo
comprove que minha inveja
traz, em si, valor oculto.
Não é muito o que te peço.
É tão somente a certeza
de não ter vivido à toa,
mesmo me crendo um poeta
por mais de oitenta e seis anos.