Desenhei a noite

desenhei a noite

com lápis gastos pela memória do tempo

dizendo despedidas e distâncias

pelas sílabas tartamudeando lembranças

pelas velhas palavras

pelos ecos dos versos de um antigo poema

arquétipos de um sempre e mesmo dilema

das mesmas vidas tantas vezes vividas

desenhei a noite

com dobres de sinos

dobres sonoros e desnudos

e o farfalhar das asas do vôo das andorinhas

carregando o instante e a tarde

molhados pela chuva impudente e insonte

com as (poucas) roupas da meretriz

eu desenhei a noite

toda cheia de cores,

sonhos,

perfume barato,

uma lua carmim acendendo as esquinas

e com as lágrimas que se escondiam

nos olhos nus da seminua meretriz

fiz a poesia inviolável

e o silêncio vagaroso e ingênuo,

incessante e incontido,

esquecendo-se nos gestos intemporais

das mulheres sem nomes

das madrugadas insones

desenhei a noite

com um gosto travo de passado

de tempo perdido

com gosto de engano

e do sono das tempestades

dormindo no colo doce e rítmico da alma

desenhei a noite

com o sentimento desatando nostalgias

com teu nome sussurrado pelo invisível vazio

pela vastidão da ausência semeada nos ventos

e as lembranças de um sonho que já se pôs a dormir

com o pranto a me chamar

eu desenhei a noite

toda cheia de olhares,

desencanto,

quieta loucura

e com o desespero que se escondia

na hora de ir embora

na fuga dos passos andarilhos do amor

desenhei a noite

e os cenários simulacros da indiferença

desenhei a noite

com a lua inerte sobre a vastidão do deserto

e miragens trazidas pelo vento inefável

que morde o silêncio imprevisível

que antevê a manhã

e tomba

e se cala

na face de um céu sem perfume