ESCREVI DEPOIS DE MORTO

Outro dia eu morri. É verdade, ou pelo menos quase.

Esse ‘quase’ também é verdade porque nunca minto.

É da altura desmedida dos anos já vividos que afirmo,

certo de ter morrido, que a 'coisa toda' é apenas acidente.

O que mais é a vida senão um acidente, um caso narrado,

um conto recheado de mea-culpa, enredo e versões,

impressões, desvãos, visões narrativas – vida!

Segue rota, respostas para o 'como', o 'onde'

ou o 'quando' do ocorrido dentro da neblina.

Polindo os dados porque estou morto, invento maneira de delongar

aquele certo estado de espírito que me abateu no dia em que morri.

Delongar... O que mais faria se é a morte é o único fato?

Eu que desencarnei tantas vezes nessa mesma vida

que ainda sigo espantado, emendado pedaço em pedaço,

vou contando... contando... Mas antes advirto:

só componho versos para me distrair e narro mentindo,

descobrindo o desnecessário afirmo um qualquer de verdade.

O destino é mesmo um acidente.

O destino são rasuras que o tempo faz no rosto de uma criança

ranhuras feitas no passado, o destino são como as linhas

de um rosto que já foi conhecido.

O destino são traços em qualquer rosto desfigurado, desconhecido.

***

Foi assim, numa esquina

haviam crianças sujas brincando na calçada

um cachorro desnorteado atravessou a rua

um menino sujo saiu do meio das crianças sujas

e também atravessou a rua como se fosse um cachorro sujo

uma das mãe gritou desesperada na outra calçada, e o tempo parou.

A mão cega do destino parou o tempo, parou a moto e eu cai.

Mas já na curva distraído eu pensava: metade de um homem

é o conjunto das palavras que ele descobriu e a outra metade,

a parte sóbria desse mesmo homem, é silêncio e destino.

Depois da queda veio o sangue. Depois do sangue

o oco branco do osso, escarnio vivo de lenho aberto, me sorriu.

Caído no chão, sem retórica e sem auxílio, acordei assustado.

Acordei como se nascesse dolorido,

acordei como se não sonhasse mais.

O silêncio tinha engolido meu vocabulário, comido quase tudo.

***

No chão, acordei para a eternidade vazia e faminta.

Desamparado no meio da rua, no entre o nada e o quase tudo,

acordei no frio do medo, no ventre visto por dentro,

nascendo ao contrário do outro lado da engrenagem

que rolava sobre o horizonte nesse instante.

A eternidade sobrevinha no inteiro de tudo que se partia.

Descobri que no branco da dor a consciência percebe o fim

e ao invés de recomeço, o que se vê é a vida sem bandagens,

sem liames, sem corpos astrais ou vínculos espirituais.

Nenhuma luz, nem túnel. Apenas a crueldade de ainda estar vivo.

Nenhum véu a cobrir o mistério

sobre os véus a cobrirem os mistérios.

Depois da morte não há luz ou fantasia de qualquer duração.

Não há nada depois da última dor,

apenas o desejo de ser 'outro eu' mais uma vez.

Morrer é interminável, é um grito sem gesto.

É uma boca faminta a devorar a sorte de sermos animados

imersos na imensa boca d’água que tudo engole.

***

Dito aquilo, escrevo isto e canto distraído um saber antigo.

Uma verdade qualquer embrulhada no instante.

Tudo que em mim parece é fome, é motor nas trevas do mundo.

Insaciável pereço, apressa o medo meu fim.

***

Nessa breve e perigosa travessia

sobre o mar dos ruídos cortantes

a minha distração tem sido

distinguir no som das palavras

unidas ao reboliço dos ares

minha lira soando harmoniosa

calma, serena e constante.

Distinguir o fogo fátuo das ideias e dos planos, as cadeias fugidias,

as imagens desencadeadas pelo atrito das impressões.

Assim deslizo míope louvando a inobservância na vigília

e a distração saborosa no excesso de zelo.

Isso é um resumo instável, um esqueleto metálico.

É um poema maltratado, uma distração obsessiva.

É a rigidez do plano desde a rua até acentos nobres.

Verbos amputados alimentam pausas desnutridas,

polir superfícies repisadas tem sido minha distração.

Imaterial inverso

no limite, a vida suportável nos ciclos de viés notada

sem cor

Osso da palavra gasta, fraturada engessada

cravada noutra palavra ‘tala’ ou ‘cova’

logo se torna 'mortalha' para num átimo renascida em ‘trapo’

dar-se elegante e renovada em drapeada leitura.

Minha distração, depois de morto, repito

tem sido o hábito de polir

fazer tinir o metal intratável, ruído constante no reboliço dos ares.

***

Subcutânea razão,

o vazio sem olhos é a boca da engrenagem faminta

é outra carne que se ergue da estilhaçada na dor.

***

Morto, também tenho sido distração para sombras.

Julgo ocultar o cansaço vestindo o meio dia

para esconder o simples desejo de renascer.

Por isso revisto o desnudo, o medo se move nas trevas

deste modo resto na completa solidão: o fim do fôlego

dentro de um grito na agonia que mais ninguém vê.

Baltazar

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 24/08/2016
Reeditado em 16/06/2017
Código do texto: T5738833
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.