A CASA E O VELHO

soleira da porta

rachada

criando matinho

beirada de janela

cheia de musgo

quem se importa?

mureta e degrau

de terra batida

telhado quebrado

meio torto

meio capenga

serve

de ninho de passarinho

azulejo azul

antigo e encardido

jogado num canto

esquecido no depois

sofazinho rasgado

era florido

aquele quase estofado

cortina desfiada

de renda

mulher rendeira

mulher rendá

o gato no fogão

esquentando a pança

a galinha na panela

estrangulada numa galinhada

o radinho de pilha

que nem toca mais

só chia e chia

como água remexida

sobre a louça

desbeiçada

e amanhecida

um fio de luz

querendo entrar

pelos buracos

do pau a pique

meio na parede

meio no barro

o cachorro

corre magro

arrastando a linguiça

que defumava

na brasa

rasa do fogo apagado

e o mosquito

passa fome

distraído e sem zumbido

tudo agora sem sentido

mas lá está

ele

assuntando o céu

tem um rosto

ressecado de sol

tão antigo

debaixo do chapéu

esfiapado de palha seca

sumido nas carnes

insatisfeitas da face

se tivesse dentes

naquela boca escancarada

os rangeria

se tivesse lágrimas

naqueles olhos fundos

as choraria

quem retorna?

ninguém

quem ele espera?

ninguém

nesse cenário

sem nada de novo

bate um coração de penumbra

num peito

espantado e resistente

que medita no sentido

que a vida tem

Mírian Cerqueira Leite

Mileite
Enviado por Mileite em 04/08/2016
Código do texto: T5719000
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