Alguma coisa entre dois nadas

eu andava dormindo demais

e pensando no suicídio

sonhava com cavalos de plástico bêbados

amontoados num carrossel,

e sonhava com flores de papel

e máquinas de fazer bolas de sabão,

e calendários com mulheres peladas

era mais simples do que hoje

nem mais fácil...

apenas mais simples

eu tinha um médico legal

ele usava óculos e vivia tossindo

e em algum momento sempre me dizia

"Preste mais atenção em você, é um rapaz bastante jovem"

e depois limpava as lentes e me mandava embora...

Que não ousasse fazê-lo chorar!

E então eu voltava para casa

e lia Hemingway, Tolstoi, Machado e Pirandello

Esses caras que todo mundo gosta de ler

mas com quem jamais alguém gostaria de fazer amizade

e bebia café

com cachaça

e depois fechava os livros e ria

e ligava a música e dançava e cantava

e chorava, finalmente

e dormia, e acordava

e de alguma forma

eu era mais do que alguma coisa entre dois nadas

um punhado de capim entre a vida e a morte

pelo menos eu estava ali

a meu serviço

eu me amava, mesmo que eu não demonstrasse

eu não era Torquemada nem Napoleão

nem o Marlon Brando

nem o tal do Steve Jobs

eu era eu e bastava

e penso...

meu médico tinha razão:

eu era bastante jovem

praticamente imortal

porque eu era só e escrevia poemas lúgubres de amor

enquanto o resto do mundo apenas lavava a porra da louça

R A Ribeiro
Enviado por R A Ribeiro em 30/07/2016
Reeditado em 31/07/2016
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