LUCILA

LUCILA

Minha voz não tem pudor,

não tem cor nem rancor.

Sem decoro minha voz ecoa

e se junta ao coro das mulheres

para quem seus homens

chegam atrasados à mesa

erram o endereço da cama

e chamam suas damas

de minhas vagabundas.

Minha voz ancora no raso da vida

e decora a superfície dos vestidos

para que outras passem ao largo

com ou sem seus homens

e façam do mundo descarrilhado

comboio a seguir seu curso.

Embora goste do perfume barato

de certos homens brutos

eu não gosto das mãos cegas

certas e brutas

daqueles que depois do banho

ainda úmidos em volúpia

acreditam ter o mundo girando

em torno do próprio umbigo.

Apenas invejo a certeza

que têm e coro vermelha

fingindo ser tocada sob a pele

por aquela tão bem definida verdade.

A simples verdade da carne dura

da sorte bem nascida

de ter sido homem noutra vida.

De ter sido outra noutra camada de dor,

ter sido forjada no calor de ondas

e notas nobres de raros perfumes.

Longe de mim ser modelo,

eu nasci verbo indulgente.

Olhos vorazes enxergam

aborto em mim porque nasci

da brutalidade da mão firme

que fizera germinar negligente

a inesperada candura de Lucila.

Nas ruas, ora sem cheiro crua,

vago itinerante 'insuportadora'.

Sou rasgo na epiderme aberto,

no ovário já era um delito.

Me consumem os dias

a vida é uma estria

libérrima,

abrupta e contígua.

Entre aqueles homens eu sou mais.

Me sinto outra, sou ainda mais bruta.

Baltazar

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 02/07/2016
Reeditado em 22/06/2017
Código do texto: T5685171
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