Guardar a chuva

O guarda-chuva

Não guarda a chuva

O guarda-chuva

Guarda da chuva

O guarda-chuva aberto

Destina o desaguar

Subtrai a água

Trai a chuva

Cerceia o poema

A ser escrito na pele

Quando a água toca o corpo

A chuva é matéria para o poema

Para quem sabe ler

Um pingo é letra

E a chuva grossa

Uma língua inteira

A boca das palavras

A trama entre sujeitos e predicados

Um infinito de orações.

Um temporal excede a chuva

Antecede a língua

É linguagem torrencial

Memória de sons

Umidade de solo irrigado

Respiração ofegante de árvores

Abraços de jambos e abacateiros

Rios e lagos espelhos

Inscrições nas paredes das cavernas

O guarda-chuva fechado

É um ser esquecido

O próprio esquecimento

Presente esvaziado de sentido

Potencialidade para um vir-a-ser

Que não é

Que não se sente

Que não se sabe

Um talvez preciso

A mais pura imprecisão

O guarda-chuva é um ser retraído

Precisa se abrir ao mundo

Despir-se de mão

Voar ao vento

Enamorar-se do chão

Rolar aberto ao desejo

O guarda-chuva carece

In-ver-ter-se

Per-ver-ter-se

Re-ver-ter-se

Ter a chuva para ver a si

Apropriar-se dela

Deixar-se por ela

Ser nela

Em si e de per si

Rever sua própria existência

Guardar a chuva

E aguardar o poema.

Esse poema é uma espera.

De chuva.