PARADOXAL CONTABILIDADE HUMANA
Nos muitos buracos da cidade, o quebrar dos autos;
nas assustadoras negociatas, a ausência da polícia;
nas miseráveis prostitutas, a ausência de humanismo;
nas lindas crianças abandonadas, a feia vista grossa;
nas sinaleiras pessimizadas, o irritar dos motoristas;
no desrespeito do governo, a fraqueza do povo;
nas quedas das encostas dos morros, a falta de lares;
na exploração do trabalhador, a ausência do Direito;
na pesada fome do povo, a grande fartura de poucos;
no alto luxo de poucos, a baixa desgraça de muitos;
no tudo ter de tão poucos, o pouco possuir de muitos;
na cultura de poucos, o cruel analfabetismo do resto;
na escravidão de tantos, a impunidade de patrões;
na higiene dos ricos, a mórbida sujeira dos pobres;
na sujeira dos pobres, a perfeita limpeza dos ricos;
na certa honestidade dos pobres, o calote dos ricos;
na graça dos ricos, a infeliz desgraça dos pobres;
na presença dos ricos, a marginalidade dos pobres;
na esperança dos ricos, a vil desilusão dos pobres;
no trabalho dos pobres, o elevado lucro dos ricos;
no sempre vadiar dos ricos, o trabalho dos pobres;
na chula nudez dos pobres, o deslumbrar dos ricos;
na vil honestidade de tantos, a safadeza de muitos;
no grande descaso de tudo, a plena ausência de lei;
na fé de muitos, o bom jogo de pseudo-humanistas;
na soltura de gatunos, a prisão de ladrões de galinha;
na atrocidade de malvados, a meiguice de inocentes;
na máscara de poucos, o passar a perna em tantos;
no forjar de poucos, a ilusória alegria de muitos;
no dormir de poucos, a constante vigília de muitos;
no triste sofrer de muitos, o belo laser de poucos;
no quase tudo de poucos, o quase nada de muitos;
no feliz viver de poucos, o eterno morrer de muitos;
no bom futuro de poucos, muitos sem nenhum futuro;
no presente de poucos, muitos quase sem esperança;
no passado de tantos, a indecente glória de poucos;
na infelicidade de muitos, a felicidade de poucos;
no saber de poucos, a triste ignorância de muitos;
no muito ter de poucos, a grande falta de muitos;
no gostoso viver de poucos, a feia morte de muitos;
na bem alta desgraça de muitos, a glória de poucos;
no bom acerto de muitos, o erro provável de poucos;
no explorar de poucos, o ruim deplorar de muitos;
na felicidade de poucos, a infelicidade de muitos;
na fatalidade de poucos, a normalidade de muitos;
no sucesso de poucos, o vil insucesso de muitos;
no profundo viver de poucos, a morte de muitos;
no bom rezar de religiosos, o blasfemar de ateus;
na discriminação racial, o preconceito proposital;
na covardia de poucos, a honestidade de muitos;
na perseverança de poucos, o desistir de muitos;
na sabedoria milenar, a piada nova saída do forno;
nos poucos do conhecimento, muitos na ignorância;
no ajudar de poucos, o deplorável negar de muitos;
no repelir de muitos, a falsa união de tão poucos;
no trair de poucos, a presença de pudor de muitos;
na calma vida de poucos, a morte infeliz de muitos;
no amor a vida de Deus, o desamor vital do ateu;
na crença religiosa, a negação científica parcial;
na esperança de muitos, o sucesso de tão poucos;
na perfeição de poucos, o alto desvio de muitos;
na versificação irregular, a boa beleza semântica;
no lindo sono de muitos, a feia insônia de muitos;
no belo jogo da vida, o fogo maléfico da morte;
na prova de tudo de muitos, o mistério particular;
no arredar da moderna vida, a calmaria da morte;
no calor da atual vida, a frieza da morte antiga.
Salvador, 2002.