HOJE

HOJE

Elane Tomich

Onde foi que se escondeu

no ponto abaixo do medo,

acima da linha de ir,

impertinente ilusão

que a ferrugem corroeu,

no impulso de seguir

labirinto de segredos?

Sonhando se assim não fosse

de ser como antes era.

Coqueluche, ciranda de tosses

e o dom da multiplicação

de colos macios e mãos,

mães tantas de amor sem espera.

Fico à cata, nos cantos,

de restos de acalantos

em vésperas de todos os santos.

Debaixo do colchão de palha,

ainda sorri por um triz

palhaço de pano rasgado...

Se a idéia não me falha

o tempo comeu o engraçado

que era a bola do nariz.

O vento batendo à porta,

em súplica, transborda a dose

da taça de sedução,

num sem fim de flauta doce,

som do vento que engana

pra que entre a assombração

da história da "Moura Torta,"

escuro arrepio que emana.

O Lago dos Cisnes no ar,

no sumiço da vitrola

que estava naquela quina.

Tchaikovsky fica a pairar

num tempo que se descola

de um agora, sólido e frio.

Engastado na retina,

um cristal de sentimento,

lágrima que não rola

de tanta emoção o estio,

em fresta de esquecimento.

Em sapatilhas de pontas

rodopia em desvario

uma emoção às tontas

no despido do vazio.

Jogo um último olhar

às reticências do ar...

Dói-me este chão tão pisado

por chinelos amestrados

arrastando vida e morte

de vícios antepassados.

Beijos de valsa no chão,

no rufar de passos fortes:

um corte no coração,

risco que isola o passado.

Meu Deus, como o tempo passa

no embaçado da vidraça,

do lado de fora enfeitada

por anjos de cara amassada.

Num só imenso verão,

chuvas de eterno inverno.

O relógio carrilhão

num segundo de estratégia,

cala-se em instante terno,

eterno, de amor sem tréguas,

emudecendo tragédias.

Numa caixinha sem corda,

música, musa esquecida

em sonho que não acorda.

Nas coisas restos de vida,

aos caco, amor por inteiro.

Do lado de lá do passado

um presente me foi dado:

esperança em forma de cheiro.

Perfume de não me olvides

na razão dos eufemismos.

Um Voltaire no aparador,

irônico, aberto em Candide,

sublinhado em L'Optimisme.

Ao lado, quem me explica,

nesta crença que me foge?

No vaso, viçosa flor,

tinta fresca e a rubrica

do meu pai...Data de hoje!