Somente dentro de mim

Somente dentro de mim

eu sinto que a vida,

a vida queima como agora

sem dentro e sem fora

a poesia não tem hora

nem cabe dentro do tempo

e, então,

eu fico nuvem

eu fico sol

eu fico um tanto de um arrebol

eu fico renúncia

e solidão

eu fico estrela cadente

eu fico, assim, sem razão

eu fico menino trêmulo

eu fico com medo do medo

eu fico mar silente e incerto

eu fico deserto e degredo

eu fico garrafa e mensagem

vagando em mares de azuis puídos

à uma e meia da tarde´

ou às três da madrugada

a poesia é carta ao vento

que dispensa de ser datada

A poesia me respalda a viver o meu suicídio de cada dia

e a prenunciar o que diz o vento à folhagem dos sentidos

sinos tocando e entardecendo riachos que não sei conter

Ouço, encantado,

esta estroante confusão do som dos pingos da chuva

tamborilando no telhado

quando o verso erra em meu pensamento

e as palavras se despegam

apaixonadamente

escorrem pelo espaço

onde as sombras da tarde traduzem-se,

pouco a pouco,

nas pétalas escuras

flores de uma noite

que acorda dentro de mim

Ouço, dentre o som ritmado da chuva,

este vento vivo e viçoso que traz o mar

e o fogo inescrutável dos mistérios desta fugidia eternidade

aonde minhas mãos compassivas

delineiam pendoadas linhas nas quais professo meus delírios

que afagam este cansaço

de onda arrebentando e sendo engolida pela areia

e eu fico aguardando o sal

manietar-se à cálida nudez das areias

e sinto-me livre

a caminho do esboço e da inocência das noites

pássaro cruzando a escuridão

carregando estrelas

e o sonho de ser, insistentemente,

o silêncio eloquente da remissão e da liberdade

outra vez

em tantas vidas

leves e silentes

adocicadas como os sussurros dos corpos que se amam

longas como o soluço do rio tocando o fragmento do mar

num comovente rumor

como uma lágrima de amor