Quaresma
E acabou o carnaval
Cessou a folia na rua
Mas minha fantasia continua
Apegada à pele como lepra
Como letra de marchinha
Grudada na memória
Sou pierrot apaixonado
Deixado pela colombina
Num canto, desenxabido
Folião aposentado
Da alegria efêmera
De um girassol à meia noite
Desço às cinzas nesse quarto
Numa quarta-feira de cinzas
No cinza de um dia qualquer
Em que nenhuma fênix levanta
Desço ao cortejo abandonado
Folião atrasado
Ansioso pela incandescência do sábado de sol que não mais há
No próximo sábado, Aleluia!
Expectativa de uma ressurreição incerta
Deus, meu! Por que me desamparaste?
Por quarenta dias hei de esperar
Por quarenta anos já dura minha sina
E a quaresmeira morta em minha janela
Se apega em ramos secos, desbotados
Folião arrependido
De ter perdido a alegria de outros carnavais
Encara-me o desafio do jejum de carne
Em que minha carne é mais uma vez consumida
Com lágrimas de azeite
E sangue dessalgado
Mar morto, água gelada
Tanto gelo, tanto sal
Meu corpo bóia e se recusa
A descer às profundezas gélidas
Onde a vida é impossível
Bacalhau
Noruega, Chile, Portugal
O mundo todo em um mesmo calendário
E eu sou um peixe fora desse aquário
Quarto, quarta, quaresma
De se negar morreu o Cristo
Folião abnegado
Enquanto eu, bem menos nobre
Sofro a sina de um Judas malhado
Culpado
E sem moedas de prata
Sem força, sem forca
E sem carnaval