Imagino

Senhor,

imagino campos de flores florescendo

colorindo e perfumando os caminhos

espraiados e sozinhos

apascentando a terra incriada

pela inescrutável iniquidade da chuva

Imagino, Senhor,

a pujança incendiada pelas águas

a roça quebrando milho

sob a dicotomia de um sol afogueado e noturno

fingindo passos perdidos num perdido caminhar

a colheita vagem a vagem do feijão

as galinhas e a serenidade ciscando

na inocência dos quintais

a vaquinha para dar a oferenda do leite

Senhor,

imagino crianças brincando

vendo o vento arrastar as nuvens

túrgidas de águas e imagens cognoscíveis

meninos de pés descalços pisando o barro

e a inflexão do silêncio acordado pelo sonho

crianças inventando mundos atemporais

e impalpáveis

e crianças comendo

e crianças estudando

os dentes todos, tolos... sorrindo

lembrando o antigo futuro

que se ergueu do chão sedento

angustiadamente crestado

e rachado pela soberba e a indiferença

esquecido pela sorte

onde pastavam agonicamente

a inanição e a morte

Lembro, Senhor,

das inocentes brincadeiras

(às vezes nem tão inocentes assim)

irremediavelmente irresistíveis

insuportavelmente inadiáveis

um pulo no abismo que mora em cada ser

em cada mão

que colhe estrelas

sonhos chuvosos

num sem querer

num sem razão

como o gesto da flor que pendula...

pendula...

e sem poder conter-se derruba a gota d'água

e transborda o mistério

a promessa suave e crível

da vida vicejando em sonhos

em tantos outros sonhos possíveis