Ainda hei


Ainda hei de sacar a gravata que me enforca,
desfazer seu nó e jogá-la ao canto,
arrancar botões, libertar-me de camisas
e, torso nu, sentir o vento nos pelos de meu peito;
ainda hei de chutar aos céus os sapatos que me tolhem
e, pés descalços, caminhar pela relva úmida, vadio,
sentindo de novo a carícia da terra entre os dedos...
ainda hei de arregaçar as pernas das calças,
vadear rios, quedar-me em suas barrancas,
jogar pedras em remansos, ver vôos de garças,
banhar-me nu, e secar-me aos raios do pôr-do-sol.
Ainda hei de soltar pipas, jogar pião, correr atrás de bola,
pular carniça, bota, bola de gude, trepar em árvores,
roubar frutas do vizinho, mangas, laranjas, carambolas....
Ainda hei de sob a copa da figueira da praça,
Roubar-te um beijo e, tímidos, as primeiras carícias,
Gravar teu nome em versos com o canivete,
Emoldurados por corações entrelaçados.
Ainda hei de tomar-te nos braços, em um abraço,
E, contra o muro, no escuro, sentir teu corpo virgem
Fundir-se ao meu, pela vez primeira, conhecer o amor,
Jurando juras que sabemos não serão cumpridas.
Ainda hei de rasgar passaportes, CPFs, identidades,
e vagar vagabundo, sem destino, ao léu, por todo mundo,
sem compromisso senão com a vida, sem responsabilidades.
Ainda hei de sorrir e, ao ouvi-los dizer que fiquei demente,
em meus olhos turvos, de novo o brilho da esperança,
mesmo que por um dia, depois de velho voltar a ser criança.
LHMignone
Enviado por LHMignone em 01/10/2005
Reeditado em 30/09/2013
Código do texto: T55327
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