Arenoso, molhadiço

Tenho este meu legado,

um inacabamento profícuo

espalhado por todos os lugares:

palavras

Elas nascem mortas

São desérticas, letras secas

fluindo tal areia

em ampulheta sem viragem

Hoje caem-me amiúde

Caem de mim versos,

parágrafos inteiros,

As vírgulas?

Desabam-me muito,

mas,

não tenho paz em pontos finais

Ah!,

os finais não saem

e meu deserto não se acaba

Continuo sendo tudo o que fui

Continuo perdendo tudo o que perdi

Venho perdendo o primeiro amor,

coincidindo com minha perda de juventude,

desde quando o perdi primeiro

Já ela, a juventude,

e minha namoradinha – coisas mesmas -,

desbarranca-me avalanchizada

Escorre bruto nesta encosta de mim

o cataclismo

Nele, pedras são umas impermanências duras

rolando asselvajadas sobre esta casca mole

À terra chamo meu (in)alicerçamento vítreo, arenoso

Poesia não sustenta a gente. Ainda, assofrêga,

e isso é o desacontecimento dos afetos

No meu braço direito, por exemplo, mora

um banco de areia de saudade

volta e meia o desastre,

coisa cotidiana,

move-o para o centro do peito

A areia, como todos sabem, pesa, pois

é feita de palavra

O peso sufoca um pouco, porém,

a natureza dos grãozinhos é espalhar-se

É assim que o deserto se redistribui

e avança também

E redistribui-se e avança-me;

Avança muito o deserto quando venta

A intempérie erode

e o faz porque é natural do lapso de tempo

(a isto que se chama vida, sabe?)

ir desgastando a gente até as partículas ficarem

miudinhas para a corrente carregar

Disso tenho que as palavras não somente

de mim caem

rolam arrastadas as falecidas

Estou quase coberto deste decesso verbal,

habitado de luto constante

de linguagem e lembrança

Eu mesmo, de onde procedem estas mortes

contumazes,

estou ainda vivo

Bebo água,

leio texto

E duas vezes neste ano me iludi de paixão,

quando concomitante ocorreram duas estações de chuva

Desta irrigagem subsisto

porque nem toda a sílica me abate

Já tive ano em que passei mortinho. No entanto,

não saio falando de minha ressureição,

poderão achar-me excêntrico

Quando vem mais certa a poesia assim

é porque estou molhado,

rara situação em que a semântica não somente

tomba de mim. Mas,

também, meu estado é inabalável!

Fernando Béca
Enviado por Fernando Béca em 28/01/2016
Reeditado em 29/01/2016
Código do texto: T5525605
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