Hoje

hoje

enquanto tudo caminhava

rotineiramente

para a sempre e mesma sorte

acordei tropeçando nos sonhos que a noite deixou cair

sonhando com o esplendor dos dias da minha infância

galos cantando

de dentro do dia demorando ser madrugada

o cão dormindo

entre calados e cativos buracos que fez pelo quintal

a semi sombra das luzes derramadas pouco e pouco

sobre as casas

sobre as coisas

ainda sonolentas

e as vidas

deixando entre o sonho e o olhar que acorda

num tanto de indecisão

entre o dia já rodeado de murmúrios

e a noite ainda falando de escuridão

as sedes, os passos, os caminhos

sedes indizíveis

vagos caminhos

passos em vão

a ilusão que não se esvanece

e fica como um murmúrio do vento nos galhos

derrubando flores no cotidiano

balançando ninhos

reverberando lentamente gorjeio de passarinhos

a caravela do tempo circunavegando a aurora

e tantos mares insabidos

vazados de marulhos

e tardias lembranças de gaivotas

hoje,

não acordei a tempo de ver

os instantes antigos e sincréticos que trariam a claridade

nem a sentença do destino

onde folhas

árvores

deuses

o firmamento

toda a vida do universo deveriam ungir

a tênue luz amarela/avermelhada

de mais um dia ferido de pequenas ilusões

de criança falando com passarinho

apontando lua ao meio-dia

como se fosse o entardecer

e a vida não fosse o mistério a se resolver

hoje,

graciosa e pequenina

a lua saiu dos minaretes da noite

e pôs-se, clandestina,

em pleno meio-dia

no céu de um azul bem fininho

por nada

por fortuita vadiação

num dia sem nome

num tempo sem data

numa época sem estação

num tempo em que vivo

deslinde após deslinde

a incompletude da Origem

um dia depois do outro

que é assim que me faço

pedaço após pedaço

o tempo breve

sem certezas

o amor pedindo

o beijo leve

um perfume alvíssimo

inunda meu dia

até o próximo céu se apagar

por pura vadiação