Fio e desfio

fio e desfio

e desconfio de tudo

procuro a ponta da meada

desmancho nós

atiro tramas ao vento

ruídos

que o vento derruba

contenho a fúria

calo-me

morro a morte mais silente

morro a morte ressurgida

nos fios que fio

para a crisálida da minha vida

inquirem-me:

noites de chuva

dolentes

os girassóis

girando em meu peito

buscando um sol igual a ti

lembranças

a tua língua

o teu corpo nu

o sonho tátil

as noites longas e agônicas

os dias abrasados de sombras

confrangendo o peito

e a alma

a solidão irrompendo das imagens na janela

trazendo o marulho de um mar repetido e complacente

o barulho das figuras nas águas

cantarolando no telhado de telhas de barro

hoje parece somente um instante

que se desmanchou no opaco arquivo da memória

comoção

unção

mergulho

fluído

medos e segredos

a brisa lenta e fugaz

a mão estendida

dissolvida

esquecida no sentimento

num arder sem nome

oculto

no gesto que adormeceu

frágil e humano dentro de nós

escrevo, nesta tarde, por que é chuvas

e chuvas fazem sentir

e prescindem do pensamento

e assopram

e ateiam fogo a tanta palavra esquecida e ainda acesa

sob as cinzas de tudo que não te disse

e despencam águas de melancolia sobre mim

fio e desfio

e desconfio de tudo

procuro a ponta da meada

desmancho nós

embebedo-me de ceticismo

o que em mim pode ser de alguma serventia?

o que em mim é peleja e agonia

memória e solidão?

o que em mim ainda é possível

se tudo em mim é esta opalescente ilusão?