Poupai-nos por algum tempo!

Aquela pobre vaquinha indo para o matadouro,

tão velha e magra que tem os ossos furando o couro.

Parece que ela adivinha que caminha para o fim.

Se ela pudesse dizer, talvez nos diria... assim:

"Meu boiadeiro me levando à morte,

Dei minha vida para lhe ajudar...

Meu leite puro é que matou a fome

De seus filhinhos, que ajudei criar.

Os meus filhinhos você levou embora.

Uns para o corte e outros no estradão...

Puxando carro pelo chão do mundo,

De dor, sangrado pelo seu ferrão...

Um obrigado eu esperava ouvir agora,

Porém, só ouço a chicotada da partida.

Meu coração, entristecido, está chorando

A ingratidão de quem tanto ajudei na vida.

Hoje estou velha, pra mais nada presto...

A minha morte só lhe satisfaz.

Vivi a vida só lhe dando lucros,

Sem o direito de morrer em paz...

Quando sua faca atravessar meu peito

E o meu sangue lhe escorrer na mão,

Por sua pobre ignorância humana,

Meu boiadeiro, lhe darei perdão.

Um obrigado eu esperava ouvir agora,

Porém, só ouço a chicotada da partida.

Meu coração, entristecido, está chorando

A ingratidão de quem tanto ajudei na vida.

Após a morte, eu serei seus passos,

No seu calçado feito com meu couro...

Serei o cinto pra enfeitar madames,

Serei a bolsa pra guardar seu ouro...

Desde o início da humanidade,

Quando, em Belém, viram a Divina Luz,

O meu calor, na fria manjedoura,

Fui eu que um dia aqueci Jesus...

Um obrigado eu esperava ouvir agora,

Porém, só ouço a chicotada da partida.

Meu coração, entristecido, está chorando

A ingratidão de quem tanto ajudei na vida".

(Trio Parada Dura)

(...)

— Gênero humano! Eu li há dias no Jornal do Comércio um artigo em que se fala dos interesses do produtor, do consumidor e do intermediário; falta falar do interesse do boi, que deve pesar alguma coisa na balança da República. O interesse do produtor é vendê-lo, o do consumidor é comprá-lo, o do intermediário é impingi-lo; o do boi é justamente contrário a todos três. Ao boi importa pouco que o matem em nome de um princípio ou de outro, da livre concorrência ou do monopólio. Uma vez que o matem, ele vê nisso, não um princípio, mas um fim, e um fim de que não há meio de escapar. Gênero humano! não zombeis esta pobre espécie. Quê! Virgílio serve-se-nos para suas comparações poéticas; os pintores não deixam de incluir-nos em seus emblemas da agricultura; e não obstante esse préstimo elevado e estético, vós trazei-nos ao matadouro, como se fôssemos simples recrutas! Que diríeis vós se, em uma república de touros, um deles se lembrasse de convidar os outros a comer os homens? Por Ceres! poupai-nos por algum tempo! (Machado de Assis)

Trio Parada Dura
Enviado por J Araujo em 02/01/2016
Reeditado em 20/01/2019
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