Madrugada

as madrugadas modulam

lentas e plangentes

quando querem ser silêncios

o regaço passa breve e contente

sonhando a noite imprecisa

deixando o sussurro de sombras fragrantes

nos lilases da aurora

o vento passa e chora

e esconde-se nas folhas sonolentas e caladas

esconde-se no transmutável tempo

às vezes célere

às vezes vagaroso

sempre enganoso

sobre mim o céu escuro

sob o céu a madrugada

já não há quase ninguém nas ruas

nas ruas não há mais nada,

dormem,

à luz lenta e intermitente da vigília amarela que cai dos postes

sou o que sinto

minha alma não tem nome

nem imagem no espelho

minha alma tem todos os tempos

do que já fui

do que sou

do que serei

silêncio incendiado

urdido instante a instante

esqueço o sibilar coercitivo do vento

só o orvalho ressuma ternura nas flores

a aranha tece com sanha a sua teia

a noite arrasta a vida escuro a dentro

sustenta as cordas da rede

que geme inquieta

calo o livro

que já dormitava em minhas mãos

cesso a colheita

prescindo da escolha

a última palavra escorre da folha

e borra os meus dedos sempre inscientes

repousam a casa e o rio

só o desconhecer-me

devora a hora indescritível

fecho os olhos

a escuridão é uma canção

e, então,

danço a lonjura das palavras

tendo por dama a solidão