O homem que eu nunca consegui ser

vai caminhando,

cada vez mais para longe de mim,

o homem que eu nunca consegui ser,

os sonhos que adormeceram

no mundo das idéias

nas noites de vigília e sofreguidão,

incontáveis sonhos inanimados,

perpassando a imanência da alma

deixando na minudência dos dias

a desconfortável sensação

de olhar para mim,

olhar em volta,

e não me ver

e nunca ser

e ser o outro

e ser o mesmo sempre ser

em tanto tempo consumido

deixando a lágrima como forma

inominada e infinita das quimeras que grassam

sendo os dias claros e sem segredos

sendo as noites dos escuros mais profundos

dentro dos mais sustidos medos

dentro dos mais longínquos mundos

que afloram em mim

pássaros voando ausências

e memórias do não ter sido

reminiscências de vidas que não vivi

partes de mim,

cisma e mistério

atravessando os segundos

sendo que os olhos que tenho

divergem e devoram as imagens que contemplam

são estes olhos que por vezes olham inertes

para o que ainda não tem nome

ou cujo o nome se perdeu

quando a primavera debandou os pássaros

ou os gestos intangíveis lhes consumiram

e, no entanto, ainda inunda a alma de comoção

e de estesia

o homem que nunca consegui ser

era muitos

o tempo passando era vário,

a solidão invisível,

indizível

e as lágrimas do homem que eu nunca consegui ser

eram muitas e prolongadas

e com o tempo vão secando no rosto

do menino medroso que sempre fui

maduras, convulsas, desesperadas